Relatório policial regenerado: o depoimento do delegado de polícia

6 de junho de 2023,

Da prova testemunhal na persecução penal
A regra geral é a de que qualquer pessoa pode ser testemunha, nos termos do artigo 212 do CPP. A doutrina tradicional corrobora que testemunha é a pessoa que perante a autoridade declara o que sabe a respeito do fato criminoso (Mirabete, p. 553).

 

É de se apontar que a testemunha, para ser classificada como tal, precisaria ter presenciado uma situação vinculada ao fato criminoso e às suas circunstâncias. Nem sempre é assim que acontece.

Até existe uma certa flexibilização em face da testemunha de ouvir dizer. Tal espécie de testemunha é conceituada pela doutrina como “testemunha auricular”, ou seja, ela não presenciou os fatos em si, mas ouviu outras pessoas falarem sobre ele [1].

 

O delegado de polícia não se enquadra tão facilmente nesse conceito de testemunho direto, portanto. Na verdade, esses profissionais costumam ser chamados à baila para trazerem ao processo o caminho da investigação, ou seja, a forma de produção dos elementos de convicção produzidos no desenrolar do inquérito policial.

O papel do delegado de polícia na investigação criminal
Os delegados de polícia exercem funções de polícia judiciária e de polícia investigativa, ou seja, atuam de forma mais clara somente após a ocorrência de infrações penais. E, graças a esse papel mais repressivo do que preventivo, são poucas as vezes em que tais autoridades presenciam os fatos criminosos.

Mas isso não vem impedindo a banalização da intimação para que delegados de polícia compareçam às audiências judiciais para resumirem o teor das investigações para as partes, bem como esclarecerem como chegaram (por técnicas investigativas sigilosas) a tais resultados.

O chamamento do delegado de polícia como testemunha para somente relatar atos investigativos (e seus caminhos) não tem razão lógico-jurídica, porquanto não agrega fatos novos além dos já passíveis de se acessar pela mera leitura atenta do relatório policial. Gize-se que o delegado costuma não ter presenciado nenhum ato criminoso (falta pertinência lógica). Seguidamente, externa ele a sua opinião técnico-jurídica sobre a autoria delitiva (indiciamento) com base nos elementos trazidos aos autos.

Não é incomum, também, que delegados sejam chamados a depor sobre técnicas de investigação, o que é um absurdo ainda maior.

E essa dependência das percepções do delegado de polícia acaba escancarando o fato de a maioria das ações penais serem réplicas do que foi produzido na investigação criminal. A segunda conclusão é ainda mais impactante: não só se reproduz o que foi produzido no inquérito policial, mas também se tenta dar uma nova roupagem ao relatório do delegado de polícia. A isso chamaremos de relatório policial regenerado em prova testemunhal.

O delegado de polícia como fonte de prova
Nessa forma de intimação anômala, a oitiva do delegado serve para resumir o teor da investigação policial em um ato processual detalhado, crivado pelo contraditório, transformando-se a autoridade que conduziu a investigação em fonte de prova e, por isso, criando o instituto que preferimos chamar de testemunho indireto pela presidência das investigações.

Essa lógica, na verdade, transforma não só o delegado em fonte de prova, mas também o próprio relatório policial, o qual, pela força de conexão entre os elementos probatórios que nele foram narrados, passa a deter autonomia probante. É que a percepção do delegado sobre a conexão dos elementos probatórios produzidos surge como elemento probatório autônomo, quando ele é ouvido em termo de depoimento.

E isso não deveria ser banalizado da forma que está sendo. Inclusive, outros profissionais acabam temendo por represálias jurídicas semelhante e acabam sendo colocando em semelhante situação de constrangimento em face da prestação de depoimentos nada ortodoxos. É o caso dos peritos criminais. Veremos mais sobre isso à frente.

A exemplo desses outros profissionais, a legislação não retira do delegado de polícia a prerrogativa de se manifestar nos autos por meio das peças jurídicas, previstas expressamente no ordenamento. Afinal, não deveriam ser, ordinariamente, fontes ordinárias de prova, pois a lei determina que se manifestem nos autos por meio de seu relatório final.

A exemplo do laudo pericial, o delegado de polícia age de ofício (determinado pelo artigo 10 do CPP), confeccionando o relatório final do inquérito policial, lembre-se.

É nesse momento procedimental que o delegado valora os atos investigativos produzidos, descreve as diligências e justifica sua capitulação jurídica para fins de indiciamento, indicando se o fato criminoso realmente ocorreu e se estão presentes elementos suficientes de autoria.

A expedição do relatório final não impede que outras diligências sejam requeridas, nem muito menos que pontos essenciais ao oferecimento da denúncia sejam sanados por meio de relatórios complementares. Mas há uma forma correta (e ordinária) de fazê-lo.

Das diligências complementares necessárias à denúncia
É importante mencionar que o delegado expõe sua percepção técnico-jurídica sobre os fatos no relatório policial final, momento em que, inclusive, promove ou não o indiciamento. E se as diligências não são suficientemente esclarecedoras, cabe ao Parquet manifestar-se pela complementação daquelas que sejam realmente imprescindíveis à oferta da peça inicial (artigo 16 do CPP).

Contudo, prefere o Parquet amiúde oferecer denúncia e, ao invés de solicitar a necessária elucidação de liames até então incompreendidos, arrolar o delegado de polícia como testemunha indireta pela investigação por ele conduzida.

Não é razoável, contudo, que as partes defensiva e acusatória tentem se utilizar do delegado de polícia como depoente em situações tais que ele não tenha participação direta na dinâmica criminosa, mas somente relatado o que se sucedeu ao longo da investigação.

E quando falamos em participação direta na dinâmica criminosa é incluir o delegado no palco do crime (presencial ou virtualmente), não sendo possível tê-lo como depoente só pelo fato de ter conduzido ou acompanhado atos de investigação posteriores ao momento consumativo dos crimes em apuração, mesmo que por intermédio de medidas em tempo real, a exemplo da intercepção telefônica etc.

Delegado como testemunha em substituição
A Lei n° 11.719/08 alterou a antiga redação do artigo 405 do CPP que trazia a possibilidade de substituição das testemunhas de defesa e da acusação que não fossem encontradas. A revogação de tal dispositivo deixou um hiato no que se refere a possibilidade de substituição de testemunhas, o que parece ter incentivado que o Ministério Público buscasse uma alternativa para tal [2].

E isso é relevante, pois acreditamos que há motivos justos que justificam a intimação do delegado para depor em juízo. Uma delas é o depoimento do delegado em substituição a testemunhas ausentes, coagidas ou mortas, inclusive.

Nesses casos, parece razoável que o Ministério Público ou a defesa intimem o delegado de polícia como testemunha substitutiva, com o objetivo de buscar um provimento jurisdicional justo e legítimo, a fim de por termo à lide criminal.

Ou seja, legítima é a substituição testemunhal, e não a intimação do delegado com prevalência sobre indivíduos que sejam efetivamente fonte de prova. Daí sim há motivo razoável para colher tal percepção, pois daí o processo de reconstituição da verdade vai além do que foi esposado no relatório policial final.

Da investigação de societatis sceleris: outra exceção
Existem certas investigações que se vinculam a fatos criminosos em que a respectiva consumação se protrai na linha do tempo. Versam, portanto, sobre crimes ditos permanentes.

Nesse caso em específico, o delegado não só participa da operacionalização de medidas probatórias em tempo real, mas também acompanha (e pode influenciar) diretamente na dinâmica criminosa, a qual ainda está a se consumar. Exemplo comum desse tipo de investigação são as que versam sobre sociedades criminosas (exemplo de associação para o tráfico, organização criminosa, associação criminosa etc.).

Nesses casos, não é a complexidade da investigação que justifica a possibilidade de o delegado figurar como testemunha indireta, mas sim o fato de, ao longo da investigação, o crime ainda manter seu momento consumativo protraindo-se no tempo. Assim, a participação do delegado não se resume ao fato de ser o presidente de investigação de fato pretérito, mas por ser testemunha contemporânea do desenrolar do crime societário.

Do testemunho de outros agentes da segurança pública
Existem agentes que, ainda que não sejam fontes de prova, agem em prol da investigação. Manifestam-se por documentos orbitários ao relatório final do inquérito policial, não cabendo a eles a condução da investigação criminal. Documentam sua atuação por meio de laudos, relatórios de investigação e ofícios de resposta.

Por isso, não há dúvidas que agentes de polícia, os quais tenham de alguma forma participado de atos vinculados à investigação criminal podem ser ouvidos como testemunhas. Militares e guardas municipais, por sequer deterem possibilidade ordinária de se manifestarem nos autos, são suscetíveis de serem arrolados como testemunha. Quanto aos peritos, há peculiaridades a serem trazidas.

Os peritos: a manifestação por laudo complementar
Os peritos criminais são bons paradigmas para reforçar o porquê de os delegados não poderem ser banalizados como depoentes, quando somente presidiram investigações sobre fatos pretéritos.

Importa destacar que os peritos criminais estão inseridos em arcabouço normativo próprio, a exemplo dos delegados. Possuem a prerrogativa legal de manifestarem-se ordinariamente por intermédio dos laudos que confeccionam, os quais serão invaginados nos respectivos procedimentos persecutórios.

É fato que, a exemplo dos delegados de polícia, os peritos se manifestam por meio de documentos escritos nos autos. Mas há diferença de grau em suas atuações. O delegado requisita a atuação do perito, o qual age em prol da investigação criminal que é conduzida pelo delegado de polícia.

Portanto, os experts materializam vestígios vinculados a ações criminosas e respondem quesitos formulados pelas autoridades que conduzem a investigação ou o processo, para que tais elementos ganhem sentido científico. Não podem adentrar em méritos técnicos-jurídicos, até mesmo por sua qualidade acessória da investigação (artigo 159, parágrafo 3º, do CPP).

A legislação até prevê que, havendo necessidade de esclarecimento mais detalhado sobre algum ponto da perícia, as partes podem pleitear a oitiva dos peritos em audiência. Mas é importante que se perceba que essa não é a regra.

Isso porque os peritos podem, ainda que intimados para comparecerem, decidir por apresentarem as informações complementares por meio de laudo. E isso é relevante para mostrar o caráter subsidiário do depoimento. Vejamos:

“Art. 159. § 5º. Durante o curso do processo judicial, é permitido às partes, quanto à perícia: I – requerer a oitiva dos peritos para esclarecerem a prova ou para responderem a quesitos, desde que o mandado de intimação e os quesitos ou questões a serem esclarecidas sejam encaminhados com antecedência mínima de 10 (dez) dias, podendo apresentar as respostas em laudo complementar;”

O promotor não pode ser testemunha indireta pela presidência do PIC
Mantendo simetria até mais perfeita com outro agente que, ainda que anomalamente exerça as funções de presidente da investigação criminal, citamos o caso do membro do Parquet.

Do mesmo modo que a doutrina menciona não fazer sentido que o membro do Ministério Público — que conduziu um procedimento de investigação criminal (PIC) — seja testemunha do processo criminal respectivo, há que se expor que, via de regra, também não deveria o delegado de polícia servir como tal.

Os tribunais superiores vêm decidindo nesse sentido.

“HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ESTELIONATO. ALEGAÇÃO DE IMPEDIMENTO DE TESTEMUNHA. Tese não apreciada pelo Tribunal Estadual em razão da má Instrução do pedido. Supressão De Instância. Existência de patente ilegalidade a ensejar a concessão da ordem ex officio. Impossibilidade da oitiva, como testemunha, de ex-promotor de Justiça que atuou no Procedimento Investigatório Criminal em que foram apuradas as supostas condutas delitivas do réu. Precedentes. Pleito Liminarmente Indeferido, contudo, ordem de Habeas Corpus concedida de ofício.” (HC 744255-SP, rel. ministra Laurita Vaz, julgado em 27/5/2022)

Ainda nessa linha de raciocínio:

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DESNECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DA DEFESA PARA O JULGAMENTO DO WRIT. FEITO LEVADO EM MESA. SÚMULA Nº 431/STF. HOMICÍDIO QUALIFICADO. INTERROGATÓRIO POLICIAL ACOMPANHADO POR MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DENÚNCIA. PROMOTORES ARROLADOS E OUVIDOS COMO TESTEMUNHAS DA ACUSAÇÃO. NULIDADE.

[…]

2. Não é possível ao membro do Ministério Público, que nessa condição atuou na fase inquisitorial, ser ouvido como testemunha em juízo, por absoluta incompatibilidade. É nítida a confusão feita entre os papéis de parte processual e testemunha (sujeito de provas), tornando-se evidente a nulidade absoluta dos depoimentos prestados em juízo pelos Promotores de Justiça que exerceram suas funções no inquérito policial, ainda que tenham se limitado a acompanhar o interrogatório do recorrente.

3. Recurso ordinário provido, rejeitada a preliminar.” (RHC nº 20.079/SP, relatora ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, DJe de 22/2/2010)

Breve conclusão
E isso tudo nos leva a concluir sobre a importância do presente debate. Não pode o depoimento do delegado ser proibido peremptoriamente, pois há situações razoáveis que o justificam; mas também não há como banalizá-lo por mera conveniência intelectiva daqueles que não compreenderam o que se encontra narrado no relatório policial.

O papel de equidistância do delegado precisa ser mantido não só para a preservação de sua imparcialidade na investigação, mas também após a sua finalização (quando da ação penal correlata). Quando o delegado de polícia atua injustificadamente como fonte de prova (ainda que indiretamente), acaba desequilibrando a balança de isonomia entre acusação e defesa.

 

 é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito, doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

Fábio Costa é deputado federal por Alagoas, relator da Lei Orgânica da Polícia Civil, membro titular da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, da Frente Parlamentar da Segurança Pública, vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), delegado da Polícia Civil de Alagoas, graduado em Direito e em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário Cesmac, pós-graduado em Direito Processual Penal e Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera (Uniderp—Campo Grande).

Hudson Benedetti é delegado de Polícia Civil de Goiás, professor de Direito Penal para carreiras policiais do curso CPPolícia, pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes e pós-graduado em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FespMDFT).

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