Policial militar é indiciado por fraude processual e desobediência

24/01/21 por Carlos Minuano – Ponte.org

Justiça de SP reconhece que o PM tentou prejudicar as investigações e provas de inquérito após perseguição policial

Abordagem envolveu perseguição e prisão de motociclista |Foto: Divulgação/Governo de SP

A Justiça de São Paulo recebeu um pedido da Polícia Civil para investigar a conduta do policial militar Fábio de Paula Soares, indiciado por prática de fraude processual e desobediência. A decisão reconhece que o PM tentou prejudicar as investigações e provas de uma abordagem que envolveu a perseguição e a prisão de um motociclista que trafegava com parte da placa encoberta.

O suspeito em fuga teria apontado uma arma na direção dos policiais, mas foi atingido na perna por um disparo do policial militar Alexandre Furtado Gonçalves. Porém, as armas dos policiais militares não foram apresentadas durante registro da ocorrência no 1º DP de São Bernardo do Campo (ABC). Somente o revólver (com numeração raspada) que estaria com o motociclista foi entregue na delegacia. O caso aconteceu na madrugada de 17/01.

O motociclista, após receber atendimento médico, foi preso em flagrante sob suspeita de tentativa de homicídio qualificado, porte de arma com numeração suprimida e desobediência. E o policial militar Fábio de Paula Soares foi indiciado sob suspeita de fraude processual e desobediência.

Segundo documentos da Polícia Civil, apesar de determinada a preservação do local e provas, antes da chegada da perícia, o PM Soares fez a apreensão do armamento do também PM Gonçalves.

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“O procedimento dos policiais militares representa mais uma usurpação das atribuições inerentes à Polícia Civil”, comenta a presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia Civil do Estado de São Paulo (Sindpesp), Raquel Kobashi.

Essa também foi a percepção da delegada Renata Muassab. Ao assumir o plantão na manhã seguinte à ocorrência, ela entrou em contato com Soares para determinar a presença dele para depoimento e apresentação da arma utilizada na perseguição policial. Mas o policial não cumpriu a ordem.

A delegada encaminhou uma representação à Justiça de São Paulo para a apresentação das armas apreendidas pela Polícia Militar na delegacia para a realização de exame pericial e investigação da conduta do policial.

O Ministério Público opinou pelo acolhimento da representação e o Poder Judiciário recebeu a solicitação. Após receber a notificação por meio de um oficial de justiça, o PM terá prazo de 48 horas para entregar as armas.

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A decisão do Tribunal de Justiça, proferida pelo juiz Fernando Martinho de Barros Penteado, argumenta que a Polícia Civil é quem deve atuar na função de Polícia Judiciária nos crimes dolosos contra a vida, apreender objetos relacionados à apuração e determinar a realização de exames periciais em geral. “A Polícia Militar e a Justiça Militar estadual não têm atribuição para investigar e apurar crimes dolosos contra a vida de civil, ainda que praticados por policial militar em serviço”.

“Mais do mesmo”

“De uns dois ou três anos para cá, a Polícia Militar vem insistindo em investigar, mas a função dela é a de fazer a segurança ostensiva”, observa a desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), Ivana David. Ela ressalta que isso está no artigo 144 da Constituição Federal. “Cabe a Polícia Judiciária [Polícia Civil] a investigação de crimes comuns.”

“A decisão da justiça de São Paulo prestigiou a Constituição Federal, não existe a hipótese da Polícia Militar deixar de apresentar as armas utilizadas em uma ocorrência”, afirma desembargadora.

Entretanto, segundo a desembargadora, o caso pode ser classificado como “mais do mesmo”. Ela relata ter percebido em 2020 um aumento expressivo dos casos da PM investigando crimes comuns, principalmente envolvendo suspeitas de homicídio tentados e consumados envolvendo policiais militares.

“Os policiais militares envolvidos nestes casos começam a investigar e o pior, a resistir em entregar suas armas usadas em embates”. Segundo a desembargadora, além de causar desgaste entre policiais, prejudica o andamento das investigações. “Tem obrigado delegados a recorrerem à Justiça.”

Com 30 anos atuando como juíza, e 28 com jurisdição criminal, Ivana afirma que não consegue entender porque a PM insiste em um procedimento que só prejudica a apuração dos fatos. “O delegado não está buscando culpados para condenar, ele está procurando a verdade, é um garantidor da Constituição”.

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A definição do que é uma investigação hoje não é a mesma dos tempos da ditadura, reclama a desembargadora. Ou seja, uma apuração bem realizada pode provar que um determinado indivíduo não foi o autor de um crime. “Estamos vivendo tempos difíceis, precisamos ficar o tempo todo repetindo o óbvio.”

As alegações de policiais, na visão da desembargadora, são sempre as mesmas: otimizar e acelerar as investigações. “Nenhuma em amparo à lei, se é para a otimizar vamos garantir para a sociedade educação e saúde, com certeza isso vai reduzir prisões”, analisa a desembargadora.

Investigações paralelas

Ivana acredita que a insistência em práticas como essa, de não apresentar armas utilizadas em ocorrências, é uma forma de provocar juízes para plantar alguma decisão favorável à tese de que a PM pode realizar investigações paralelas.

Para a desembargadora, a confusão começou após a intervenção militar no Rio de Janeiro, quando as forças armadas assumiram função da Polícia Militar. Para que não respondessem por eventuais crimes na Justiça Comum, o presidente Jair Bolsonaro, por meio do Ministério da Justiça, ainda sob comando de Sérgio Moro, criou uma lei desviando jurisdição e competências.

A partir da nova lei, integrantes das forças armadas cumprindo função de policial militar passariam a responder na Justiça Militar. “Acharam que ia colar para todos”, analisa Ivana. “Abuso de poder e de autoridade que eram julgados pela Justiça Comum passou a ser atribuição da Justiça Militar e tentaram arrastar homicídio, só que que aí esbarraram na Constituição.”

Aula de direito penal

Os documentos da Polícia Civil e a ordem do juiz Fernando Martinho de Barros Penteado sobre o caso de São Bernardo do Campo deram uma aula de direito penal, dizendo o óbvio, o que já está na lei, reafirmando as atribuições da Polícia Civil, afirma a presidente do Sindpesp, Raquel Kobashi. Ela destaca a importância da decisão a favor da delegada Renata Muassab.

Ajude a Ponte!

“A delegada se posicionou de acordo com a legalidade e o Poder Judiciário corroborou isso, integrantes da Polícia Militar, a todo momento, rasgam a Constituição Federal e distorcem a lei.”

Outro lado

Ponte procurou a Secretaria de Segurança Publica de São Paulo para que se manifestasse sobre o caso. Mas, apesar de contatos por telefone e por e-mail à empresa de assessoria de imprensa In Press, que atende o órgão, a reportagem não obteve retorno.

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