Marco inicial da prescrição em infrações disciplinares praticadas por civis

Paralelismo das punibilidades penal, cível e administrativa

A punibilidade surge como consectário natural da prática de uma conduta típica, ilícita, e praticada por um agente dotado de culpabilidade. Dessa forma, sempre que uma infração penal é cometida, abre-se a possibilidade para que o Estado exerça seu jus puniendi. Em certas circunstâncias, no entanto, o Estado pode abrir mão ou até mesmo perder esse direito de punição, especialmente pela ocorrência do fenômeno da prescrição.

Assim, mesmo que tenha ocorrido uma infração penal, pode o Estado, por questões de política legislativa e em alguns cenários por ele expressamente anunciados, optar por não exercer seu poder punitivo, resultando na chamada extinção de punibilidade.

A exemplo do que a Constituição deixou transparecer no seu artigo 5º, trazendo a prescritibilidade das infrações penais como regra, as infrações administrativas são igualmente prescritíveis, até mesmo aquelas que causem prejuízo ao erário (nos termos do artigo 37, §5º, da CF) e as nominadas atos de improbidade (artigo 23 da Lei nº 8.429/92).

Não se cuida, portanto, de cenário exclusivo do Direito Penal. No âmbito cível e no Direito Administrativo Disciplinar — que se ocupa do exercício do jus puniendi sobre a pessoa física do servidor que pratica uma conduta típica, ilícita e culpável —, o Estado também pode se desinteressar ou deixar escapar seu direito de punir o autor de determinada transgressão, dando ensejo à extinção de punibilidade.

Modelos de contagem de prescrição administrativa

O presente artigo se debruça sobre as disciplinas administrativas que impactam na atividade dos policiais de natureza civil, ainda que os arcabouços punitivos nem sempre lhes sejam exclusivos.

O exercício da pretensão punitiva da Administração Pública em relação ao servidor policial está sujeito a prazos fatais, uma vez que o objetivo do poder disciplinar é promover a regularidade do serviço público, com a correção tempestiva do comportamento do transgressor.

Pressupõe-se que esse interregno entre a infração e a sanção seja razoável, sob pena de ineficácia e descrédito das punições administrativas tardiamente infligidas [1], além de colocar em xeque à garantia constitucional da prescritibilidade das infrações legais.

Para boa métrica do prazo prescricional, é crucial determinar o momento em que esse período se inicia. Para tanto, optamos por dividir essa questão com base em três nomenclaturas poderosas: a) modelo da cognição administrativa; b) modelo do marco consumativo; c) modelo misto [2].

Do modelo do marco consumativo prescricional

Existem diplomas administrativos sancionadores nos quais a contagem do prazo prescricional leva em consideração o momento consumativo da infração administrativa. Por exemplo, a revogada Lei Estadual de Goiás nº 10.460/1988, em que o prazo da prescrição tinha início a partir da data da prática da transgressão (artigo 322, §1º).

Outrossim, o § 1º do artigo 80 da Lei Orgânica da Polícia Civil de São Paulo (LC 207/79), alterado pela Lei Complementar nº 922/2002, menciona que: “a prescrição começa a correr: I – do dia em que a falta for cometida; II – do dia em que tenha cessado a continuação ou a permanência, nas faltas continuadas ou permanentes.

Já o artigo 28, § 3º, do Decreto nº 3.044/1980, estabelece para os servidores da Polícia Civil do Rio de Janeiro que: “o curso da prescrição começa a fluir da data da prática do evento punível disciplinarmente e interrompe-se pela abertura de sindicância, apuração sumária ou inquérito administrativo”. “Apesar de ser uma boa regra, não é necessariamente a predominante. O modelo da cognição administrativa prescricional possui até certa prevalência sobre esta.”

Tal modelo, centrado no momento consumativo da infração, segue a mesma tendência estabelecida para a prescrição penal em abstrato, o que gera um encaixe lógico mais adequado entre todas as formas de prescrição.

É incompreensível que alguns diplomas adotem o modelo da cognição administrativa, principalmente quando tais normas prevejam que a prescrição dos crimes e das correlatas infrações administrativas operem-se pelos mesmos prazos. Por exemplo, o artigo 142, §2º, da Lei nº 8.112/90 assevera que “os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime”.

Portanto, se a regra estabelece que a prescrição criminal em abstrato começa a contar a partir da consumação do crime (artigo 111, incisos I, II e III do Código Penal), não tem muita lógica afastar-se dessa diretriz e começar a contar a prescrição administrativa a partir de outro marco, como a data em que a infração se tornou conhecida.

Por fim, o marco do momento consumativo prescricional foi recentemente adotado pela Lei nº 14.230/2021, que introduziu alterações significativas na prescrição de atos de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92). De acordo com a novel legislação, a prescrição para esse tipo de ilicitude será de oito anos, a serem contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, a partir do dia em que cessou a permanência (artigo 23).

Do entrelace do modelo da cognição administrativa prescricional e o Direito Penal

O modelo da cognição administrativa prescricional leva em consideração, para fins de início da contagem do prazo, o conhecimento da infração, ainda que a sua consumação tenha ocorrido em momento bem anterior.

Esse modelo é adotado atualmente pelo estado de Goiás (Lei nº 20.756/2020) e pela Polícia Civil de Santa Catarina. Neste caso, citamos o artigo 244, §1º , Lei nº 6.843/86, o qual fixa que a prescrição começa a correr: I – do dia em que o ilícito se tornou conhecido da autoridade competente para agir.

Conquanto traga vantagens punitivas à Administração Pública, esse modelo revigora a capacidade punitiva do Estado, mesmo quando fica evidente a sua letargia em descobrir e punir o autor da infração.

A adoção desse modelo de cognição administrativa pode se confrontar com a própria ideia de prescrição. Afinal, a leniência do Estado em sua faceta persecutória deve ser motivo para fazê-lo perder o direito de punir, e não para perpetuá-lo.

Quem pode conhecer o ilícito para fins do início do prazo prescricional

Consoante o §2º do artigo 201 da Lei Estadual de Goiás nº 20.765/2020 “o prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido pela administração pública e regula-se pela maior sanção abstratamente prevista para a transgressão”. A referida redação torna incontrovertida a adoção do modelo da cognição administrativa no recente Estatuto Administrativo do estado de Goiás.

Ainda que não concordemos com o presente modelo, é preciso avançar na discussão. Desejamos delimitar nesse sistema “quem poderia conhecer o ilícito administrativo” para então se dar azo ao começo da contagem da prescrição.

A nosso sentir, o dever de zelar pelas normas administrativas é de todo qualquer servidor público, inclusive de órgãos distintos, o que indica que qualquer um que tome conhecimento do ilícito dá inicio a tal contagem.

Afinal, a lei deixa claro o fomento ao prosseguimento administrativo de denúncias dentro do próprio corpo administrativo ou do serviço público como um todo. O dever de moralidade administrativa foi constitucionalizado no artigo 37 da Constituição Federal, o que torna o raciocínio quase incontestável.

Por isso, não se pode negar que uma correição interna feita pela própria Corregedoria da Polícia Civil em uma unidade policial, bem como uma visita do membro do Ministério Público em atividade típica de controle externo a tal locus, são hábeis a deflagrar o começo do prazo prescricional.

Se a desconformidade administrativa tiver sido exposta a quaisquer agentes públicos (ainda que não integrantes necessariamente da mesma estrutura organizacional), tornando-a latente, o prazo prescricional se inicia.

Daí, eventual posterior leniência apuratória (ou mesmo o descaso no seguimento de tais informações a quem de direito) não podem emergir em prejuízo do suposto autor da infração administrativa, mas sim em seu socorro.

Qualquer interpretação diferente fomenta que o Estado não busque o aperfeiçoamento de suas lâminas apuratórias e a comunicação eficiente entre sendas da Administração Pública, prestigiando o desleixo apuratório e a injustificada compartimentação de informações dentro da máquina estatal.

O modelo da cognição administrativa prescricional na ótica do STJ

O artigo 142, §1º, da Lei nº 8.112/1990 dispõe que “o prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido”. Nesse cenário, a jurisprudência pacificada no Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que o termo inicial da prescrição é a data em que o fato se tornou conhecido não por qualquer autoridade da Administração Pública, mas sim pela autoridade competente para a instauração do necessário procedimento sindicante ou processo administrativo disciplinar [3]. Essa exegese da Lei nº 8.112/90 pode ser observada no seguinte julgado [4]:

“Administrativo. Mandado De Segurança. Processo Administrativo Disciplinar. Prescrição. Ocorrência. Início Do Prazo Prescricional Da Ciência Dos Fatos Pela Autoridade Competente Para Instauração Do Processo Administrativo Disciplinar. Condenação Criminal Com Trânsito Em Julgado. Pena Em Concreto. Causa Interruptiva. Transcurso De Mais De Quatro Anos Do Conhecimento Dos Fatos Até A Abertura Do Processo Disciplinar. Segurança Concedida”.

Ademais, esse entendimento do STJ foi sedimentado em enunciado de consolidação de jurisprudência [5]:

“Súmula 635 — Os prazos prescricionais previstos no artigo 142 da Lei nº 8.112/1990 iniciam-se na data em que a autoridade competente para a abertura do procedimento administrativo toma conhecimento do fato, interrompem-se com o primeiro ato de instauração válido — sindicância de caráter punitivo ou processo disciplinar — e voltam a fluir por inteiro, após decorridos 140 dias desde a interrupção”.

Ainda que saibamos desse consolidado alinhamento exegético da Lei nº 8.112/90, ousamos discordar. A nosso ver, a jurisprudência merece reforma, até mesmo porque, muito recentemente, o legislador mudou a lógica prescricional dos atos de improbidade administrativa, dando ao sistema punitivo uma nova diretriz legislativa: a do modelo da consumação. Vejamos:

“Artigo 23. A ação para a aplicação das sanções previstas nesta Lei prescreve em oito anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência. (Lei nº 8.429/92, alterada pela Lei nº 14.230/2021)”.

Dos riscos práticos da adoção do modelo da cognição administrativa

O referido modelo permite a perpetualização de denúncias engavetadas maliciosamente, principalmente para perenizar o temor de punição ao infrator.

Vamos imaginar que, cientes sobre uma situação de irregularidade administrativa, colegas de trabalho deixem de informar à Corregedoria sobre tal ilícito administrativo para apresentá-los quando lhes for particularmente conveniente. Isso gera efeitos deletérios e perenes para o infrator, pois a contagem da prescrição só contaria quando da ciência da autoridade com atribuições para investigar tal fato.

E isso não parece ser um mero exemplo hipotético. Até porque um dos fatores que costuma prejudicar na promoção de um servidor público é a existência de procedimentos apuratórios em seu desfavor. Esse tipo de manobra se torna possível com interpretações como a que hoje o Superior Tribunal de Justiça confere ao instituto em estudo, muito pela opção do modelo da cognição administrativa, que nos parece injusto e sujeito a manobras corporativistas.

[1] CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da Administração Pública. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum: 2021, p. 1685.

[2] Um exemplo de adoção do modelo misto é o da Polícia Civil do Maranhão. Nesse caso, tanto o momento da consumação como o de seu conhecimento são hábeis a começar a fluir o prazo prescricional. Vejamos: Artigo 40 – O prazo de prescrição começa a fluir da data em que foi praticado o ato, ou do seu conhecimento pela administração. (Lei nº 7.681/2001)

[3] Ibidem, p. 1696.

[4] STJ, MS 21.822/DF, relator ministro Og Fernandes, 5ª Turma, julgado em 26.8.2015, DJe de 14.9.2015.

[5] STJ, MS 21.822/DF, relator ministro Og Fernandes, 5ª Turma, julgado em 26.8.2015, DJe de 14.9.2015.

 

Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito, doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

Eduardo Fontes é delegado de Polícia Federal, ex-superintendente da Polícia Federal no estado de Amazonas, autor de obras jurídicas pela Juspodivm, professor de ciências criminais, fundador do curso Próximo Delegado, professor da Academia Nacional de Polícia, especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pelo Ministério da Justiça, mestrando em Ciências Jurídicas e Políticas pela Univesridade Portucalense, coordenador do Iberojur no Brasil, aprovado nos concursos de procurador do estado de São Paulo e delegado de Polícia Civil no Paraná.

Hellyton Carvalho é delegado de Polícia Civil de Goiás, pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil, ex-chefe de Cartório de Investigação Preliminar e ex-presidente de Comissão Permanente de Processo Administrativo Disciplinar da Corregedoria da Polícia Civil de Goiás, conteudista e professor de Investigação Correcional da Escola Superior da Polícia Civil de Goiás.

Revista Consultor Jurídico, 11 de julho de 2023, 13h20

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