- Por Rafael Francisco Marcondes de Moraes
- Com Arderson Pires Giampaoli
- 09/08/2023
Em relação às questões de fato dessa fase preliminar, o artigo 6º, inciso III, do CPP incorpora o princípio da liberdade probatória ou da livre inclusão (FERRER, 2021, p. 113), o que implica a admissibilidade de qualquer razão epistêmica, ainda que sujeita a ulterior contraditório judicial.
Nos últimos anos, por força dos aportes da psicologia do testemunho, as provas dependentes da memória têm sido objeto de debates, com destaque para a mudança de abordagem do instituto do reconhecimento de pessoas (GIAMPAOLI; MARCONDES DE MORAES, 2022, p. 13-15).
Conquanto não se olvide da importância de outros meios de prova, o testemunho continua sendo suporte probatório central no julgamento de casos penais (GESU, 2014, p. 93), espaço de poder que denota verdadeiro reino das provas dependentes da memória (IDDD, 2022, p. 6), cuja pretensa repetibilidade tem sido cada vez mais discutida diante dos contributos científicos extrajurídicos, de modo a lançar sérias ponderações acerca do critério de classificação distintiva entre provas e elementos informativos (CECCONELLO; AVILA; STEIN, 2018, p. 1057-1073).
A despeito dos avanços jurisprudenciais, doutrinários e normativos, notadamente com o advento da Resolução 484/2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece diretrizes ao reconhecimento de pessoas e passa a considerá-lo prova irrepetível (artigo 2º, § 1º), acompanhando orientação do Superior Tribunal de Justiça (HC 712.781/SC, 6ª T., Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j.15/03/2022, DJe 22/03/2022), há ainda muito que se evoluir quanto ao testemunho em geral.
Adota-se o vocábulo testemunho, mais amplo e comum na psicologia cognitiva, como gênero abrangente de todas as oitivas oficiais, sem olvidar que o CPP veicula ao delegado de polícia ouvir vítimas em declarações (artigos 6º, IV e 201), suspeitos e indiciados em interrogatórios (artigos 6º, V e 185 a 196) e testemunhas em depoimentos (artigo 204), inclusive na audiência policial de apresentação e garantias do artigo 304 do estatuto de rito criminal (MARCONDES DE MORAES, 2023, p. 229-251).
A questão que se coloca, tal como se opera com o reconhecimento de pessoas, é a forma como se coleta o testemunho, que reflete a visão tradicional das características do inquérito policial como suposto procedimento escrito, mantra ecoado há décadas na literatura jurídica, baseado no artigo 9º do CPP.
Destarte, ambos os meios de prova – reconhecimento pessoal e testemunho – exigem que os atores do sistema de justiça saibam como funciona a memória humana, mormente as variáveis a estimar e as sistêmicas, o impacto das falsas memórias na recuperação de informações codificadas, a interferência dos vieses cognitivos, em especial do viés de confirmação e da consequente visão de túnel nas agências de controle do fenômeno criminal, além das orientações prestadas àquele que é chamado para auxiliar na reconstrução dos eventos de interesse penal.
Além dos pontos consignados, a ênfase à necessidade da gravação dos atos orais desponta como providência premente, já indicada para o reconhecimento de pessoas na sobretida Resolução do CNJ (artigo 5º, § 1º), e que viabiliza melhor análise da produção da prova penal dependente da memória.
A gravação audiovisual consubstancia relevante recurso epistêmico a ser utilizado sempre que possível para maior fidelidade das informações coligidas, de acordo com o CPP (artigo 405, § 1º), e com outras previsões legais como na inquirição de vítimas e testemunhas de violência doméstica (Lei 11.340/2006, artigo 10-A, § 2º, III), no registro da colaboração premiada (Lei 12.850/2013, artigo 4º, § 13) e na oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (Lei 13.431/2017, artigo 12, VI). Trata-se de medida já implantada em subsistemas de polícia judiciária, como na Polícia Civil de Santa Catarina (Resolução 11/2018), a ser somada às iniciativas de capacitação sobre provas dependentes da memória dos profissionais atuantes na investigação criminal (MATIDA, 2023).
Outrossim, pesquisas da psicologia cognitiva têm evidenciado que o emprego da gravação e de protocolos como o PEACE (Planning and Preparation; Engage and Explain; Account; Closure e Evaluation) são imprescindíveis para aqueles que almejam reduzir erros do sistema de justiça, evitar prisões e condenações de inocentes e obter informações confiáveis de vítimas, testemunhas e investigados (CECCONELLO; STEIN, 2022; MOSCATELLI, 2020).
Verifica-se, por tudo, a suplantação do adágio que rotula o inquérito policial como escrito, para que passe a ser considerado um procedimento preferencialmente oral, consentâneo com uma investigação epistemicamente orientada, à luz da contemporânea era digital e das realidades normativa e empírica.
Tal guinada confere reinterpretação constitucional ao citado artigo 9º do CPP, para que seja atrelado ao registro via gravação audiovisual de testemunhos estipulada no referido artigo 405, § 1º, do mesmo diploma, sem prejuízo de instruir peças e atos decisórios ou de tramitação formalizados, como já ocorre na esfera judicial, até porque o próprio reconhecimento de pessoas exige lavratura de auto pormenorizado (CPP, artigo 226, IV e Resolução CNJ 484/2022, artigo 10).
O estudo do contexto da descoberta (UBERTIS, 2015, p. 30), responsável pela formulação de hipóteses que expliquem o acontecimento adjetivado de delituoso, precisa superar a vetusta dicotomia acusatório-inquisitório (PEREIRA, 2019, p. 116) e a correlata mentalidade inquisitorial fundada no sigilo e na forma escrita. Ao revés, os progressos científicos, oriundos essencialmente da psicologia cognitiva, demandam pensar a etapa extrajudicial a partir de uma publicidade restringível (MORAES; PIMENTEL JR., 2018, p. 205-210), apta à ciência e participação ativa da defesa, justa no tratamento de todos como sujeitos de direitos e, sobretudo, fiável na obtenção oral de conteúdo da memória dos envolvidos na apuração de ilícitos penais.
Saiba mais em: Prisão em Flagrante Delito Constitucional (2023)
REFERÊNCIAS
CECCONELLO, William Weber; AVILA, Gustavo Noronha de; STEIN, Lilian Milnitsky. A (ir)repetibilidade da prova penal dependente da memória: uma discussão com base na psicologia do testemunho. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasilia, v.8, n.2, 2018, p. 1057-1073.
CECCONELLO, William Weber; STEIN, Lilian Milnitsky (Coord.). Manual de entrevista investigativa para a Polícia Civil. Passo Fundo-RS: Laboratório de Ensino e Pesquisa em Cognição e Justiça (CogJus), 2022.
FERRER-BELTRÁN, Jordi. Valoração racional da prova. Salvador: JusPodivm, 2021.
GESU, Cristina di. Prova penal e falsas memórias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
GIAMPAOLI, Anderson Pires; MARCONDES DE MORAES, Rafael Francisco. Reconhecimento de pessoas: por um olhar para o chão de fábrica. Boletim Trincheira Democrática, Salvador, ano 5, n. 21, Junho/2022, p. 13-15.
GIAMPAOLI, Anderson Pires; MARCONDES DE MORAES, Rafael Francisco. Inquérito policial: da inquisitoriedade escrita à oralidade garantista?. Salvador, Trincheira Democrática – Boletim do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, ano 6, n. 27, jul.2023, p. 20-21.
INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. Prova sob suspeita. Reconhecimento de pessoas e prova testemunhal: orientações para o sistema de justiça. São Paulo: IDDD, 2022.
UBERTIS, Giulio. Profili di epistemologia giudiziaria. Milano: Giuffrè, 2015.
MARCONDES DE MORAES, Rafael Francisco; PIMENTEL JR., Jaime. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal.Salvador: JusPodivm, 2018.
MARCONDES DE MORAES, Rafael Francisco. Prisão em flagrante delito constitucional. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2023.
MATIDA, Janaína. O reconhecimento de pessoas epistemicamente confiável chega à ACADEPOL/SP. Migalhas, Ribeirão Preto, 24 abr. 2023. Disponível em: <www.migalhas.com.br/coluna/nova-limite-penal/385216/reconhecimento-de-pessoas-epistemicamente-confiavel-chega-a-acadepol>.
MOSCATELLI, Lívia. Considerações sobre a confissão e o método Reid aplicado na investigação criminal. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre,vol.6, n.1, p. 361–394, jan./abr. 2020.
PEREIRA, Eliomar da Silva. Saber e poder: o processo (de investigação) penal. Florianópolis: Tirant no Blanch, 2019.
Anderson Pires Giampaoli é delegado de polícia do Estado de São Paulo; professor da Academia de Polícia de São Paulo; mestre em direito probatório pela Universitat de Barcelona (Espanha).
Rafael Francisco Marcondes de Moraes é delegado de polícia do Estado de São Paulo; professor da Academia de Polícia de São Paulo; mestre e doutorando em processo penal pela Universidade de São Paulo (USP).