Autor: Francisco Sannini, delegado de Polícia no estado de São Paulo e professor da Acadepol
A Lei 12.830/13 nasceu logo após a polêmica PEC/37 (que inviabilizaria as investigações criminais promovidas diretamente pelo Ministério Público), com a finalidade de conferir maior autonomia às apurações conduzidas pelo Delegado de Polícia. Entre outras inovações, o diploma normativo consolidou os princípios do delegado de polícia natural (art.2º, §4º) e da inamovibilidade relativa (art.2º, §5º), qualificando, assim, as prerrogativas da Autoridade Policial e, consequentemente, mitigando a possibilidade de ingerências políticas nos trabalhos de Polícia Judiciária, o que vai ao encontro dos interesses da sociedade e da Justiça.
Muito embora a Lei que nós, carinhosamente, chamamos de Estatuto do Delegado de Polícia não tenha previsto, expressamente, a sua independência funcional no comando de investigações, tal previsão se mostra desnecessária, afinal, os princípios processuais e os que regem a Administração Pública já lhe conferem esta autonomia.
Não por acaso, o STF, ao realizar o controle de constitucionalidade de Constituições Estaduais e da Lei Orgânica do DF (ADI 5.522, j. 18.02.2022 e ADI 5.579, j. 21.06.2021), destacou a independência técnica dos profissionais de polícia judiciária no desempenho de suas funções, sem interferências ilegítimas, para análises e interpretação de vestígios e elementos de convicção, à luz dos conhecimentos técnicos e da experiência laboral. Nesse sentido, aliás, se manifesta a melhor doutrina:
A independência técnico-jurídica, mais que prerrogativa profissional da autoridade investigante, constitui garantia dos cidadãos contra arbitrariedades, sedimentada pelos compromissos constitucionais que suplantam visão retrógrada e preconceituosa acerca do entendimento exarado pelo delegado de polícia, como primeiro exegeta dos casos penais. Hierarquia de pensamento, só na ditadura![1]
Sem embargo do exposto, infelizmente alguns Promotores de Justiça ainda insistem em imiscuir-se, ilegal e inconstitucionalmente, nas funções do Delegado de Polícia, pautando-se, provavelmente, numa equivocada interpretação do ordenamento jurídico que confira ao Ministério Público não apenas a titularidade da ação penal, mas da persecução penal como um todo.
É o caso do Promotor de Justiça Felipe Bragantini de Lima, da Promotoria de Justiça de Santa Fé do Sul, Estado de São Paulo. Em ofício endereçado ao Delegado Seccional de Polícia, o membro do MP questiona algumas decisões e entendimentos de Autoridades Policiais que atuam na região. De maneira ilustrativa, questionou-se a realização de investigações sem a prévia instauração de inquérito policial ou termo circunstanciado; a excessiva aplicação do princípio da insignificância; a não decretação de prisão em flagrante em casos de descumprimento de medida protetiva, sob a alegação de que a vítima deu azo ao descumprimento da medida; e, por fim, a não apreensão de menores de idade pela prática de ato infracional análogo ao crime de tráfico de drogas.
Bom, desnecessário reforçar aqui a independência funcional do Delegado de Polícia nos atos de Polícia Judiciária, inclusive na avaliação de fatos e provas, bem como na interpretação do ordenamento jurídico. Daí por que focaremos nos questionamentos feitos pela Promotoria de Justiça à luz da doutrina e jurisprudência.
Sobre a realização de investigações sem prévia instauração de inquérito ou termo circunstanciado, é preciso destacar que tais apurações preliminares são fundamentais no intuito de verificar a plausibilidade da notitia criminis, demonstrando ou não a existência de justa causa para a instauração de procedimento formal de investigação. É o que ocorre, por exemplo, nas hipóteses de denúncias anônimas, nos termos do artigo 5º, §3
º do CPP.
Nesse sentido, aliás, é firme a jurisprudência do STF ao afirmar que denúncias anônimas não servem de base para justificar a instauração de inquérito policial, sendo necessário, portanto, a verificação preliminar das informações. Deve-se salientar, ademais, que a nova Lei de Abuso de Autoridade criminaliza no seu artigo 27 as condutas de instaurar ou requisitar a instauração de procedimento de investigação criminal em desfavor de alguém à falta de qualquer indício de prática de crime. Mas no seu parágrafo único destaca que não há crime quando se tratar de investigação sumária, se referindo justamente às diligências realizadas antes da instauração do procedimento formal de apuração.
Com relação a aplicação do princípio da insignificância, tendo em vista a sua ampla aplicação pela jurisprudência, nada mais óbvio do que a sua observância também pelo Delegado de Polícia, que na avaliação dos casos em que atua deve se valer de todos institutos e princípios reconhecidos no meio jurídico.
O princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial.[2] Destarte, muito mais do que uma alternativa, é dever do Delegado de Polícia avaliar a eventual insignificância do fato. Se o membro do MP entender diferentemente, basta oferecer a denúncia, garantindo-se, assim, a opinio delicti de cada autoridade atuante na persecução penal, cabendo a palavra final ao Poder Judiciário.
Já em relação ao crime de Descumprimento de Medida Protetiva de Urgência, previsto no artigo 24-A, da Lei Maria da Penha, é forte na doutrina o entendimento de que o delito não se caracteriza caso a própria vítima tenha concorrido para a não observância da medida. Em artigo sobre o tema, feito em coautoria com o professor Eduardo Cabette, assim nos manifestamos[3]:
Em tais situações, cremos que resta desconfigurado o crime do artigo 24-A, haja vista que a medida protetiva é decretada em favor da vítima e, o que é importante, em virtude de seu requerimento. Nesse contexto, trata-se de um benefício disponível e que não deve sofrer a ingerência excessiva do Estado. Se a própria beneficiária abriu mão da proteção que lhe foi conferida, não há razão para a responsabilização criminal daquele que descumpriu a ordem judicial.
Em reforço a essa conclusão, nos valemos da teoria da imputação objetiva, que afasta a tipicidade da conduta. Ao descumprir uma medida protetiva com a anuência da vítima, o agente não cria ou incrementa um risco proibido relevante. Não há, em nosso sentir, ofensa ao bem jurídico que se busca proteger com a criminalização da conduta, qual seja, a dignidade da mulher. Com efeito, não há que se falar na caracterização do crime por ausência de tipicidade material.
Há que ressaltar que na dogmática tedesca há recentes estudos a indicarem limites ao poder de punir estatal sempre que a vítima de uma infração não se tenha feito valer de seus próprios meios de autodefesa. Afirma-se que quando há um grave descuido de autoproteção por parte da vítima em casos concretos, é de se afastar a incidência do Direito Penal, considerando sua característica de medida de ultima ratio, bem como levando em conta os estudos da chamada vitimodogmática, ou seja, as situações de autocolocação da própria vítima em risco ou situações em que a vítima precipita ou provoca a ação criminosa.[4]
Por fim, nos resta analisar a questão envolvendo a apreensão de menores infratores pela prática de ato infracional análogo ao crime de tráfico de drogas. Sobre o tema, o Estatuto da Criança e do Adolescente é claro em seu artigo 173 ao prever que menores de idade só poderão ser apreendidos em flagrante de atos infracionais praticados com violência ou grave ameaça. Ora, é evidente que o Tráfico de Drogas não se enquadra no regramento em destaque, razão pela qual, ao menos em regra, menores de idade não podem ser apreendidos em tais situações[5].
Frente ao exposto, resta claro que os questionamentos realizados pelo Promotor de Justiça, embora sujeitos à discussão, não encontram respaldo na melhor doutrina e na jurisprudência. Independentemente disso, o cerne da questão envolve o respeito às autoridades que labutam na seara penal e podem interpretar fatos, provas e o ordenamento jurídico de formas distintas.
É preciso que seja respeitada a repartição constitucional de atribuições, sendo certo que nenhuma autoridade é mais ou menos do que a outra. Cada instituição é o que a Constituição assim determinou, tendo absoluta relevância dentro de suas margens de atuação.
Ao Delegado de Polícia cabe a condução de investigações criminais, devendo atuar nos limites legais e constitucionais, promovendo o que denominamos de Devida Investigação Criminal Constitucional. No exercício de suas funções a Autoridade Policial tem autonomia para determinar o procedimento mais adequado para viabilizar a apuração da notitia criminis (IP, TC, VPI etc.); tem liberdade para aplicar princípios penais e processuais (princípios da insignificância, da ultima ratio, da presunção de inocência, da não autoincriminação etc.); e tem independência para realizar juízos de tipicidade e deliberar pela decretação ou não de prisões em flagrante.
Em conclusão, reitera-se a importância do respeito às instituições e autoridades públicas dentro de suas margens de atuação. E para que não corramos o risco de querer fazer preponderar as nossas convicções na seara penal, basta lembrar da máxima de que o indiciado de hoje nem sempre será o denunciado de amanhã; e o denunciado nem sempre se tornará réu em um processo.