O Ministério Público não tem a função de conduzir investigações criminais, pelo menos não com base na Constituição, que reserva tal atribuição à Polícia Federal e à Polícia Civil. Mesmo assim, o MP faz as vezes de polícia judiciária por meio do procedimento investigatório criminal (PIC) — instrumento que sequer é regulamentado por lei.
Atualmente, o PIC é regulado por uma resolução de 2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. No entanto, especialistas no assunto consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico afirmam que esse modelo dificulta o controle da legalidade das investigações do MP.
De acordo com o advogado Renato Stanziola Vieira, doutor em Direito Processual Penal e presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), os promotores, quando conduzem tais investigações, comportam-se como “dublês de delegados”. Os próprios membros do MP decidem em quais casos instauram um PIC, em vez de requisitar a instauração de um inquérito policial.
Histórico
O Ministério Público já investigava por conta própria mesmo antes da Constituição de 1988. Rafael Rodrigues Viegas — pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), com formação em Direito e Ciência Política, que estuda o MP — conta que o lobby das associações de classe do órgão tentou garantir seu poder de investigação, mas sofreu uma derrota na Assembleia Nacional Constituinte.
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal analisou a questão e validou as investigações do MP, mas estabeleceu uma série de parâmetros e limitações. A corte decidiu, por exemplo, que tais procedimentos devem ser excepcionais e precisam seguir as regras que norteiam o inquérito policial — como a fixação de prazos e a necessidade de autorização judicial para certas medidas.
Conforme a tese aprovada no julgamento, o MP pode conduzir investigações penais por prazo razoável, desde que respeite os direitos e as garantias dos investigados, observe as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e garanta as prerrogativas dos advogados, como o acesso aos autos.
“O que o Supremo fez foi tentar aproximar conceitualmente os direitos e as garantias dos investigados nos PICs daqueles relativos às investigações previstas em lei”, explica Vieira.
Segundo Henrique Hoffmann — delegado da Polícia Civil do Paraná, professor em cursos preparatórios e de pós-graduação em diversas instituições e colunista da ConJur —, o inteiro teor do acórdão permite constatar que o STF estabeleceu “limites adicionais”, embora eles não tenham constado na tese formal do julgamento.
Os ministros disseram que os membros do MP têm poder investigatório somente em situações específicas — por exemplo, em casos de excessos cometidos pelos agentes e órgãos policiais; de omissão intencional da polícia na apuração de determinados delitos; ou de crimes contra a administração pública.
“Apesar de não ter o Supremo estabelecido rol taxativo de crimes que podem ser investigados pelo órgão acusador, fica evidente a excepcionalidade da investigação do MP pelo simples fato de que não pode escolher, a seu bel prazer (por dar mais holofotes, por exemplo), quais delitos investigar”, assinala Hoffmann.
Para ele, o PIC não tem respaldo na Constituição — e, de forma contraditória, o próprio STF reconheceu isso ao dizer que “só se justifica constitucionalmente o exercício da função investigativa, por quem não possui essa função constitucional precípua, a partir do reconhecimento do aspecto subsidiário dessa atividade”.
Regulamentação interna
Resoluções do CNMP e dos MPs estaduais passaram a regular o PIC no mesmo sentido dos parâmetros fixados pelo STF. Tais normas internas fazem parte do movimento que se observou nas últimas décadas para tentar compensar a derrota na Constituinte.
Na visão de César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça em São Paulo e professor de Direito Penal, a resolução do CNMP é “bem completa” e não gera conflitos, pois a grande maioria das investigações é feita pelas polícias.
Já Viegas sustenta que a regulamentação ampliou o espaço de ação delimitado pela Constituinte, “que separava claramente a atividade de controle externo da policial”. Ele considera que o CNMP “legislou” e ressalta que a iniciativa se deu com Rodrigo Janot à frente da Procuradoria-Geral da República.
“Essa reversão foi possível no momento em que lideranças do Ministério Público, valendo-se do contexto de reação ao governo federal e no curso da agenda anticorrupção, materializada na ‘lava jato’, mobilizaram meios de comunicação e a sociedade em torno de um projeto de poder”, conclui o pesquisador.
Abusos
Mesmo com as ressalvas estabelecidas pelo STF, Renato Vieira entende que a situação atual da regulamentação do PIC é muito problemática: “O próprio procurador ou promotor controla a si próprio. A fiscalização judicial nesses procedimentos do Ministério Público é muito mais difícil de ser feita”.
César Dario, por outro lado, defende o PIC por ser usado apenas em alguns casos, como investigações envolvendo policiais. Ele ressalta que o MP sequer tem estrutura para promover muitas investigações, já que seu número de membros é muito menor do que o de policiais.
Mas Vieira explica que “não há um controle jurisdicional” sobre os motivos para investigar um caso. Com isso, abre-se brecha para que o critério de instauração de um PIC seja a “vitrine” — ou seja, “a magnitude do caso” ou a “aparição do promotor ou procurador”.
O documento do CNMP não estabelece quando deve ser instaurado um PIC. No caso do estado de São Paulo, há uma resolução que traz algumas outras regras, mas ela também não resolve a questão. O Ministério Público paulista registrou 2.571 PICs nos últimos dez anos.
Segundo o advogado, o MP não se limita a investigar casos envolvendo policiais. Ele diz que o Grupo Especial de Repressão aos Delitos Econômicos (Gedec) do MP-SP, voltado principalmente à repressão de lavagem de dinheiro, “é useiro e vezeiro em fazer PICs”. Os membros do grupo abrem diversos procedimentos e “investigam pelo tempo que querem, do jeito que querem”.
Para Viegas, existe um risco de “concentração desse poder de investigação criminal em uma instituição como o Ministério Público, com histórico de déficit de accountability“. As investigações do MP podem gerar “imoralidades e ilegalidades, como visto recentemente no curso da ‘lava jato'”, segundo ele.
Lei pra que te quero
No cenário atual, todos concordam que o ideal seria uma lei para regulamentar o PIC. Para Hoffmann, o fato de ela ainda não existir é um grande problema, especialmente porque essa é uma exigência do Estado de Direito com relação às funções estatais essenciais.
“Quando o assunto é persecução criminal, que lida com os interesses mais importantes do cidadão e tem o potencial de restringir sua liberdade, não se pode abrir mão do respeito ao princípio da legalidade.”
Segundo o delegado, a “violação dessa conformidade funcional” também causa um desequilíbrio no sistema acusatório, “ao se admitir que uma parte lance mão de poderes não conferidos pela Constituição nem pela lei, em detrimento da outra parte”.
César Dario concorda que uma lei traria o benefício de conferir maior segurança jurídica ao trabalho do MP. “A resolução é interna ao MP, ou seja, não vincula o Judiciário e as polícias”, indica ele. Por isso, a lei seria interessante para “não deixar qualquer dúvida”.
Mesmo assim, o procurador avalia que uma norma do tipo, com alterações relevantes no processo penal brasileiro, dificilmente passaria no Congresso, devido a diversos lobbies, como os das próprias polícias e da magistratura. Ele vai além e afirma que uma lei “não seria tão completa quanto o texto da resolução atual do CNMP”.
Na sua visão, eventuais abusos de fato ocorrem, mas por “condutas inadequadas de alguns membros do MP, que são minoria”, e não simplesmente devido à existência do PIC.
Equilibrando a balança
Vieira traz outra discussão relacionada ao PIC. Segundo ele, se o Brasil caminhar para um sistema adversarial com mais poderes para o acusador (que será o titular da ação penal), também é preciso “estabelecer um contrapeso disso já na fase de investigação”.
Em outras palavras, para permitir que o MP se torne investigador, é necessário um maior rigor com o direito de defesa — pois, durante as apurações, o investigado já terá contato com o futuro acusador.
Atualmente, existe a investigação defensiva, ou seja, o conjunto de atividades que o advogado pode promover para obter elementos de prova voltados ao seu cliente em uma persecução penal. O Código de Processo Penal também estabelece que o indiciado pode requerer qualquer diligência.
Para Vieira, no entanto, isso “é muito pouco” — a defesa ganha apenas a prerrogativa de “entrevistar alguma pessoa”. “Nós não temos uma contraposição de forças clara entre acusador e defesa no sistema legal brasileiro.”
De volta ao Supremo
Atualmente, tramitam no STF algumas ações diretas de inconstitucionalidade que questionam normas federais e estaduais sobre funções institucionais do Ministério Público e das polícias. O ponto em comum entre os oito processos (ADIs 2.943, 3.329, 3.337, 3.309, 3.318, 7.170, 7.175, 7.176) é a busca da invalidação de atribuições investigatórias conferidas aos membros do MP.
As ADIs questionam, por exemplo, trechos da Lei Orgânica Nacional do MP, da Lei Orgânica do Ministério Público da União, de uma resolução de 2004 do Ministério Público Federal sobre o PIC e de algumas normas dos MPs estaduais de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e do Paraná.
O julgamento de tais ações pode mudar o cenário das investigações do MP no país. Algumas delas começaram a ser analisadas pelo Plenário Virtual do STF em dezembro do ano passado, mas o próprio relator, ministro Edson Fachin, pediu destaque. Com isso, os debates terão seu reinício em sessão presencial, ainda sem data marcada.
Apesar do pedido de destaque, os ministros Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski (hoje aposentado) já adiantaram seus votos e acompanharam a divergência de Gilmar Mendes, que prevalece até o momento.
Para eles, quaisquer investigações criminais do MP exigem “efetivo controle pela autoridade judicial competente, que deverá ser informada sobre a instauração e o encerramento de procedimento investigatório, com o devido registro e distribuição, atendidas as regras de organização judiciária, sendo vedadas prorrogações de prazo automáticas ou desproporcionais”. Hoffmann sinaliza que tal posicionamento “nada mais faz do que reiterar o julgado paradigma” de 2015.
José Higídio é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 6 de maio de 2023, 8h48