Por Adriano Sousa Costa, Ivana David e William Bretz
Breve histórico
A Constituição de 1988 traz expresso o repúdio ao racismo, bem como, em seu artigo 5º, inciso XLII, impôs-lhe o rótulo da inafiançabilidade e da imprescritibilidade. Posteriormente, o legislador editou a Lei 7.716, de 1989, chamada de Lei Caó ou Lei do Racismo, a qual definia os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor. Não que esta tenha sido a primeira lei a tratar da temática, até porque a Afonso Arinos (Lei nº 7.437/85) lhe precedia cronologicamente.
Em 1997, atento aos outros tipos de preconceito, houve o primeiro ajuste substantivo no conceito de racismo, que, segundo a redação inicial da Lei 7.716/89, limitava-se a preconceitos de raça e cor. A partir da Lei 9.459/97, incluiu-se no seu conceito os motivos de etnia, religião e procedência nacional, bem como se criou o instituto da injúria preconceito ou racial no §3º do artigo 140 do Código Penal.
O STF, em 2021, ao decidir o case do HC 154.248, entendeu que a injúria preconceito/racial do artigo 140, § 3º, do CP era espécie da racismo e, por sua vez, imprescritível, não importando se o tipo penal se encontra na Lei 7.716/89 ou no Código Penal.
Por fim, recentemente, o Congresso nacional editou a Lei 14.532/2023, trazendo modificações na Lei de Racismo, incluindo o artigo 2º-A, o qual, à luz do princípio da continuidade normativo-típica, trouxe parte da injúria preconceito para o bojo da Lei 7.716/1989
“Art. 2º-A — Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional. Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.”
Em face dessa transposição de elementares, esvaziou-se a redação do §3º do artigo 140 do CP, que passou a trazer a seguinte redação:
“Art. 140 (…)
§ 3º. Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.”
Injúria preconceito x injúria racista
Desde a Lei nº 9.459, de 1997, a doutrina vem rotulando o §3º do artigo 140 do CP com os nomes jurídicos injúria preconceito ou injúria racial, tratadas como expressões sinônimas.
Ao passo que o legislador optou por realocar o núcleo central do referido tipo penal na Lei de Racismo, ou seja, o preconceito baseado em raça, cor, etnia ou procedência nacional, concluímos que não há mais motivos para o uso da terminologia racial ou racista para o referido dispositivo do Código Penal.
Por isso, a nosso ver, a injúria inserida no artigo 2º-A da lei 7.716/89 é que deve ser tecnicamente intitulada de injúria racista ou racial, remanescendo para o artigo 140, §3º do CP a terminologia injúria preconceito, na qual se insere a injúria etária, religiosa e a capacitista.
Injúria religiosa: entre o antissemitismo e a liberdade religiosa.
A Lei 9.459/97 incluiu as circunstâncias de etnia, de religião e de procedência nacional na definição de injúria racial (artigo 140, §3º do CP); contudo essa lógica foi abandonada parcialmente na novel redação do artigo 2º-A.
O legislador cometeu o equívoco de permitir que a discriminação religiosa remanesça no crime de injúria preconceito, não sendo transportada para o novel artigo 2º-A.
Essa decisão chama a atenção pois a discriminação religiosa — em todas as suas facetas — foi pano de fundo de uma das atrocidades da história da humanidade. O holocausto se originou das entranhas da intolerância religiosa, enraizando-se, gradualmente, na sociedade, com a permissividade de grupos de interesse oportunistas que, almejando proveitos pessoais, promoveram atos de extirpação de incontáveis vidas. E, no Brasil, o debate sobre o antissemitismo foi objeto de case do STF (HC 82.424) no qual se reconheceu o racismo religioso.
De outro turno, a decisão legislativa de não potencializar o status da injúria religiosa pode ter se dado para não criminalizar de forma mais ampla o proselitismo religioso, vez que o STF inclusive já reconheceu sua licitude (ROHC nº 134.682/ BA), permitindo-se que adeptos de uma religião busquem o resgate religioso de integrantes de outras religiões ou seitas.
Conquanto a Lei nº 14.532/2023 tenha conferido causa de aumento de pena em face de condutas discriminatórias ou preconceituosas que ocorram no contexto de atividades religiosas (artigo 20, § 2º-A, da Lei nº 7.716/89), isso não significou a criminalização da atividade religiosa; na verdade, o legislador mitigou expressamente a incidência do referido tipo penal em outro ponto, imputando o mesmo gravame penal àqueles que obstam, impedem ou empregam violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas.
O mesmo Direito Penal que protege a liberdade religiosa, incrimina também a intolerância religiosa em face de outros grupos.
Em algumas circunstâncias, será difícil para o operador do direito resolver essa equação, principalmente porque alguns dogmas das religiões se confrontam com a percepção daqueles que não comungam das mesmas crenças de salvação e, portanto, sentem-se discriminados.
E as diferentes perspectivas, a nosso ver, ainda que permeadas por falas acaloradas de proselitismo religioso, não são os objetos de incriminação do presente diploma. Se não há crime de divergência hermenêutica de normas jurídicas, menos razão ainda para se punir visões diferentes (e igualmente legítimas) da vida humana e da religiosidade intrínseca da humanidade. Tudo, é claro, se ocorrido sem abuso ou exagero.
Mas toda essa discussão mais profunda não alcança a injúria religiosa, pois, como dito, o legislador optou por não internalizá-la na Lei nº 7.716/89, deixando-a à margem desse processo de endurecimento legal.
Dolo específico ao quadrado
Antes da Lei 14.532/2023, a jurisprudência dos Tribunais Superiores era pacífica acerca da necessidade da presença de elemento especial do dolo ou dolo específico, qual seja o animus injuriandi, para a configuração do crime de injúria (artigo 140, §3º, do CP). Necessário mostrar que a intenção do indivíduo era a de ofender a honra de outrem, portanto. Ratificando tal entendimento, o STJ, em seu ementário “Jurisprudência em Teses” de nº 130 [1], publicado em 9/8/2019, assim dispôs:
“1) Para a configuração dos crimes contra a honra, exige-se a demonstração mínima do intento positivo e deliberado de ofender a honra alheia (dolo específico), o denominado animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi.”
Contudo, à medida que a Lei 14.532 de 2023 trouxe causa de aumento inserida no artigo 20-A (contexto ou intenção recreativa), abriu-se a discussão sobre o possível abandono do animus injuriandi.
“Art. 20-A. Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)”
Antes de tecer comentários mais profundos sobre os referidos dolos específicos, importante evidenciar a estranha fórmula adotada pelo legislador. Equiparou contexto com intencionalidade para fins de majoração da pena.
Perceba-se que “em contexto de recreação” é circunstância objetiva; por exemplo, é um palco de teatro, um show musical, uma festa ou uma roda de amigos. Trata-se de uma análise contextual que se traduz em objetividade. Por isso, não é motivação, mas sim circunstância. Já o segundo momento do tipo legal trata de motivação recreativa e, por esta razão, elemento motivacional/subjetivo, traduzido pela expressão “com o intuito de”. Equipara o legislador inadvertidamente essas duas circunstâncias de diferentes naturezas.
O elemento subjetivo especial “com intuito de recreação” (artigo 20-A) pode ser aplicado a todo e qualquer tipo penal da Lei nº 7.716/89. Quando aplicável a um tipo penal que não requer expressamente qualquer elemento subjetivo especial, não há nenhuma dificuldade prática em fazê-lo. O dolo específico serve para justificar a maior reprimenda legal, inclusive.
Dúvidas maiores surgem quando nos deparamos com a necessidade de coexistência de elemento subjetivo específico previsto — implícita ou expressamente — no tipo penal e o outro do artigo 20-A (com o intuito de recreação). E a injúria racista majorada pelo intuito ou contexto recreativo se amolda a essa situação mais complexa de dois dolos específicos. Nesse caso, há se considerar a coexistência destes, ou seja, aplica-se o que chamamos de dolo específico ao quadrado. A intenção recreativa é a razão exponencial do animus injuriandi, pois facilita e potencializada a consolidação do preconceito nas estruturas sociais.
Por isso, a nosso ver, a injúria racista ordinária requer somente o animus injuriandi para a sua consumação. Contudo, se as palavras racistas e injuriosas forem proferidas com intuito ou no contexto recreativos, servindo o autor de tal subterfúgio para camuflar o seu inequívoco intuito de ofender, torna-se possível a incidência da injúria racista majorada pelo contexto ou intuito recreativo.
A conduta racista injuriosa, quando escamoteada pelo manto da menor reprovabilidade social, é estruturalmente mais grave do que a conduta realizada às claras e perceptível em sua intencionalidade real por todos. Por isso a possibilidade de majoração da pena, frisamos.
E esse argumento sobre a maior reprovabilidade de condutas ardilosas é comum no Código Penal, quando, por exemplo, citamos o homicídio praticado com emboscada ou o furto mediante fraude.
O motivo de tal construção legislativa parece ser a intenção de desestimular a defesa de que, por terem sido os dizeres propalados em circunstância ou intencionalidade recreativas, não há se considerar criminosa. Entretanto a jurisprudência já vinha se afastando de teses defensivas que utilizavam a comédia como justificativa para ofensas claras e deliberadas. Vejamos:
“RECURSO ESPECIAL Nº 1934802 – RS (2021/0120690-7)
DECISÃO
Trata-se de recurso especial interposto em face de acórdão que deu parcial provimento ao apelo defensivo, assim ementado: PENAL. PROCESSUAL PENAL. DISCRIMINAÇÃO E PRECONCEITO DECORRENTE DE RAÇA, COR, ETNIA, RELIGIÃO OU PROCEDÊNCIA NACIONAL. ARTIGO 20, §§ 1. º E 2.º, DA LEI N.º 7.716/89. MATERIALIDADE. AUTORIA. DOLO REQUERIDO PELO TIPO. PRESENTES. DOSIMETRIA. FIXAÇÃO DA PENA-BASE AQUÉM DO MÍNIMO LEGAL NA SEGUNDA FASE DA DOSIMETRIA. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO. CRIME CONTINUADO. INEXISTÊNCIA DE OFENSA. NÚMERO DE DIAS- MULTA. INCOMPATIBILIDADE COM A PENA APLICADA. APELO PROVIDO PARA COMPATIBILIZAR COM A FRAÇÃO DE AUMENTO DO CRIME CONTINUADO. VALOR DO DIA-MULTA. PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. MANTIDOS NOS TERMOS FIXADOS NA SENTENÇA.
1. O dolo requerido pelo tipo penal verificado presente. Ainda que afirme não haver pretendido menosprezar raça ou etnia, a cabal admissão no interrogatório de que sabia da possibilidade de repercussão penal das condutas praticadas demonstra o dolo.
2. A alegação de que estava praticando espécie de humor, não serve para afastar o delito. A jurisprudência registra precedente de exclusão do delito quando verificado o mero ânimo narrativo, inadmitindo a exclusão na presença de animus jocandi.
(…)”
Ainda que não baste a alegação de animus jocandi, não é possível a incidência de tal dispositivo incriminador (em sua forma fundamental ou majorada) quando não houver ânimo de ofender.
Pelo exposto, a Lei 14.532 de 2023 não afastou a necessidade de animus injuriandi para a consumação do artigo 2º-A da Lei nº 7.716/89. Sob a alegação de necessidade de rompimento da tendência ao racismo estrutural, mas sem abandono do viés finalista do Direito Penal brasileiro, passou-se a agravar a situação daqueles que, com a inequívoca intenção de ofender racialmente uma pessoa, utilizarem-se de fins ou contextos recreativos para escamotearem seu desiderato espúrio.
A interpretação equivocada de que o artigo 20-A, por trazer um outro dolo específico, torna desnecessária a intenção do agente de ofender pessoa ou grupo de pessoas determinados (animus injuriandi), afasta-se das balizas do finalismo, porquanto se preocupa mais com fatos e circunstâncias objetivas do que com a intencionalidade do agente.
Sujeito passivo da injúria racista
Tal qual se dava na injúria preconceito (artigo 140, §3º do CP), na novel injúria racista o sujeito passivo é grupo de pessoas ou pessoa determinada, vez que a conduta racista segregacionista, quando dirigida a pessoas indeterminadas, subsumir-se-ia ao artigo 20 da Lei de Racismo.
Se assim não o fosse, estar-se-ia criminalizando a comédia, os comediantes e a liberdade de expressão, ainda que os dizeres de tais profissionais não estivessem embebidos claramente da intenção de ofender alguém ou a uma coletividade de pessoas determinadas.
Ademais, criar-se-iam situações esdrúxulas, pois, independentemente de quem fala, o crime incidiria. Um negro fazendo piada sobre características negras, conduziria a incidência do tipo penal em comento? Filmes e séries antigos (que contenham conteúdo jocoso sobre tal temática), ao não serem tirados imediatamente do ar, colocariam seus difusores ou mantenedores sob a mira da referida infração penal? O dolo ao quadrado resolve bem essa celeuma, afastando a incidência de tal forma fundamental ou mesmo a majorada do crime.
Imunidades
O Código Penal, em seu artigo 142, contempla expressamente as imunidades judiciária, literária, artística e funcional, afastando a incidência da injúria e difamação nessas circunstâncias. Tais imunidades não abrangem a calúnia, vez que há maior grau de interesse público envolvido, pois a imputação versa sobre crime (ainda que falso ou inexistente).
Não obstante o exposto, mantendo-se coerência com o que se defendeu sobre a necessidade de animus injuriandi, só há que se permitir a incidência da injúria racista se, utilizando-se das prerrogativas funcionais, ficar claro que as usa para criar subterfúgio para a prática de racismo.
Se não existe direito absoluto na Constituição, também não existe imunidade absoluta no Código Penal. Qualquer pessoa que ofenda alguém, travestindo a sua intencionalidade racista de rótulos laborais, não se faz merecedor da proteção legal.
Assentou-se, por fim, que, como qualquer direito individual, a garantia constitucional da liberdade de expressão não é absoluta, podendo ser afastada quando ultrapassar seus limites morais e jurídicos, como no caso de manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. Por isso, no caso concreto, a garantia da liberdade de expressão foi afastada em nome dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. (HC 82.424 – STF)
O próprio legislador, na redação o inciso II do artigo 142 do Código Penal, deixa transparecer a lógica aqui defendida, principalmente quando menciona “salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar”. Vejamos:
“Exclusão do crime
Art. 142 – Não constituem injúria ou difamação punível:
I – a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador;
II – a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar;
III – o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício.”
Grupos minoritários: elemento objetivo descritivo ou normativo do tipo?
O artigo 20-C norteia a interpretação judicial voltando-se os olhos para a pessoa ou grupos minoritários.
“Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)”
Inicialmente, destaca-se que o termo minorias foi despropositado, pois se presume que minoritários são os grupos avaliados numérica e proporcionalmente frente à quantidade da população em geral.
Ainda que o aspecto sexista não seja o escopo da presente lei, mulheres são maioria, mas ainda assim precisam de proteção acentuada. Pardos (47%) e pretos (9%) são maioria no Brasil [2], mas ainda assim são beneficiados por políticas públicas de inserção social, a exemplo das cotas para ingresso em universidades e em concursos públicos.
Por isso, a terminologia minorias parece despropositada. O objeto da proteção legal — e a sua melhor exegese — deve-se nortear pela necessidade de se construir um país livre de qualquer tipo de intolerância entre todos os seus habitantes, não reduzindo isso ao rótulo de minorias.
Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito, doutorando em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.
Ivana David é desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, integrante da Coordenadoria Criminal e de Execuções Criminais do Tribunal de Justiça e professora do MeuCurso, Cers, ESA Campinas, Associação dos Magistrados Brasileiros, Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, Associação Paulista de Magistrados, Escola Paulista da Magistratura, Escola da Magistratura do Estado de Rondônia, Escola Superior da Magistratura do Espírito Santo e Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
William Bretz é delegado de Polícia Civil de Goiás, professor de cursos preparatórios e especialista em Direito pela Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2023, 11h16