Waldek Fachinelli Cavalcante*
Como no mito da caverna, muitas pessoas preferem ficar presas à sua rotina, mesmo existindo um maravilhoso mundo exterior a ser explorado. A liberdade e a transformação social assustam.
Por toda a história das polícias civis, se esperou por uma norma que viesse a apresentar o seu arcabouço jurídico. A Lei 14.735/23 foi muito além das melhores perspectivas. O seu conteúdo, para quem labuta há muitos anos nesses órgãos, é a realização de um sonho quase impossível.
Esperava-se comemorações e lutas por todo o país em busca da aplicação imediata dos seus mandamentos, inclusive procurando a imediata regulamentação de alguns dispositivos quando isso fosse exigido.
Contudo, há uma reação muito tímida a essa profunda conquista da sociedade brasileira. A lei fortalece as instituições responsáveis pela investigação criminal, atividade que se traduz na real solução para os problemas criminais complexos.
O projeto de lei, em outro momento político, não entraria em pauta ou seria boicotado ou seria totalmente vetado. Mas aí ela está: bem redigida, ampla e transformadora. Devemos deixá-la brilhar. Lutemos para que nenhum poder a esconda.
São 50 (cinquenta) artigos, alguns com 27 (vinte e sete) incisos, trazendo inovações que podem mudar não só as polícias investigativas, mas também todo o sistema de justiça criminal e a sociedade brasileira.
É uma norma geral que institui os princípios institucionais básicos, as diretrizes a serem observadas pelas polícias civis, suas competências, estrutura organizacional básica, trata do quadro policial, do concurso, investidura e promoção, prerrogativas, garantias, direitos, deveres e vedações, além de outras providências.
Com uma redação moderna e contando com centenas de enunciados, a norma traz o vocábulo autonomia 5 (cinco) vezes, imparcialidade 5 (cinco) vezes; técnica/o 29 (vinte e nove) vezes; científica/o/cientificidade 17 (dezessete) vezes; políticas públicas 5 (cinco) vezes; inteligência 11 (onze) vezes; lavagem de dinheiro e atuação qualificada 3 (três) vezes; plano/planejar/planejamento 9 (nove) vezes; eficiente/eficiência 4 (quatro) vezes; capacitação 4 (quatro) vezes; prerrogativa/s 9 (nove) vezes.
A novel legislação deseja transformar as instituições policiais civis, modernizando a gestão, modernizando o controle do crime e valorizando as carreiras da polícia investigativa.
Se por um lado determina a continuidade de gestão e investigativa, por outro afirma que a atividade se sujeita à prestação de serviços em condições adversas de segurança, com risco à vida, e de serviços noturnos e a chamados a qualquer hora, o que garante diversos direitos.
Se por um lado determina que os Delegados-Gerais das Polícias Civis devem apresentar, até 30 (trinta) dias após sua nomeação, planejamento estratégico de gestão, por outro garante horas extras remuneradas, adicional noturno, auxílio-saúde, determina que sejam realizados concursos públicos periódicos.
Dispositivo após dispositivo, empodera as polícias civis, o Delegado de Polícia e os policiais. O artigo 26 dispõe que o delegado de polícia, além do que dispõem as normas constitucionais e legais, detém a prerrogativa de direção das atividades da polícia civil, bem como a presidência, a determinação legal, o comando e o controle de apurações, de procedimentos e de atividades de investigação.
O mesmo artigo informa que cabe ao delegado de polícia presidir o inquérito policial, no qual deve atuar com isenção, com autonomia funcional e no interesse da efetividade da tutela penal, respeitados os direitos e as garantias fundamentais e assegurada a análise técnico-jurídica do fato.
A cada passo dado na lei, constatamos a sua riqueza de detalhes, como a autorização para realização de diligências em todo o território nacional, o que nos traz segurança jurídica para o que já era feito, mas sem amparo legal explícito.
O artigo 30, inciso VIII, determina que o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Poder Judiciário e os órgãos de perícia oficial de natureza criminal deem atendimento prioritário e imediato aos Delegados de Polícia e policiais.
O artigo 30, apesar de alguns vetos, alguns vetos inclusive derrubados pelo Congresso Nacional, traz inúmeras garantias e direitos que por muito tempo se lutou.
Esse artigo, em seu inciso III, assegura o ingresso e trânsito livre em qualquer recinto público ou privado em razão da função. O inciso IV, garante o recolhimento em unidade prisional da própria instituição para fins de cumprimento de prisão provisória ou de sentença penal condenatória transitada em julgado. O inciso VI, afirma a prioridade nos serviços de transporte e de comunicação públicos e privados, quando em cumprimento de missão de caráter emergencial.
O inciso IX assegura a precedência em audiências judiciais, quando comparecer na qualidade de testemunha de fato decorrente do serviço, já o inciso X trouxe a licença remunerada para o desempenho de mandato classista.
São muitas novidades relevantíssimas trazidas pela lei, algumas estão passando despercebidas, poucas precisam de regulamentação.
A realidade cotidiana das polícias conta com a sobrecarga de trabalho e a pouca proteção dos agentes públicos delas integrantes, esteios do Estado Democrático de Direito. A LONPC corrige muitas dessas falhas do Estado para com a polícia investigativa.
O mesmo artigo 30 conserva aos policiais civis, por ocasião de sua aposentadoria, a autorização do livre porte de arma de fogo válido em todo o território nacional, assegurada a possibilidade de doação de armas de fogo institucionais aos policiais civis aposentados.
Estabelece ainda o adicional de substituição e garante aos dependentes, em caso de morte de servidor policial civil decorrente de agressão, de contaminação por moléstia grave, de doença ocupacional ou em razão da função policial, a pensão equivalente à remuneração do cargo da classe mais elevada e nível à época do falecimento, que será vitalícia para o cônjuge ou companheiro.
São enunciados a atender uma grande diversidade de demandas institucionais e dos servidores, como a possibilidade de permutas e cessões de servidores de diferentes unidades da federação, conforme o artigo 25.
Com uma redação bastante interessante, provavelmente uma estratégia para assegurar que se passasse pelas casas legislativas aqueles direitos, sem maiores questionamentos, o artigo 32 estabelece que a remuneração dos servidores policiais civis, em qualquer regime remuneratório, não exclui os direitos previstos no § 3º do art. 39 e nos incisos XXIII e XXIV do caput do art. 7º da Constituição Federal nem outros direitos sociais e laborais previstos na legislação.
Entre esses direitos estão o adicional noturno e a hora extra remunerada, por exemplo.
Enuncia, ainda, determinações operacionais muito interessantes, como o artigo 34 que veda a divulgação, a qualquer tempo e fora da esfera policial, de técnicas de investigação utilizadas pelas polícias civis e de qualquer dado ou informação obtidos por meio de medida cautelar judicial. Fato que muito prejudicava as investigações.
Como forma de fortalecer as instituições policiais civis, institui, em seu artigo 44, o Conselho Nacional da Polícia Civil, com competência consultiva e deliberativa sobre as políticas públicas institucionais de padronização e intercâmbio nas áreas de competências constitucionais e legais das polícias civis.
Nesse contexto, relevante que a lei coloca as polícias civis como componentes essenciais na elaboração de políticas criminais.
Sempre deveria ter sido assim, afinal, as polícias civis são o maior banco de dados criminais do país. Tem contato direito com o criminoso, as vítimas, o cenário criminal e o sistema de justiça criminal.
Com a profundidade de suas investigações, consegue entender o ambiente criminal como um todo, as tendências e comportamentos criminais.
A investigação criminal é a atividade perfeita para a coleta de dados sobre a criminalidade e prover os meios acadêmicos e políticos com informações relevantes para a produção de políticas criminais e estratégias de controle do crime.
A LONPC, diante disso, dispõe nos artigos 5º e 6º que a polícias civis instituirão programas e projetos vinculados às políticas públicas e aos planos nacional e estadual de segurança pública, no âmbito de suas competências; e participará do planejamento das políticas públicas e desenvolverá políticas de repressão qualificada às infrações penais; além de participar do planejamento e da elaboração das políticas públicas, dos planos, dos programas, dos projetos, das ações e das suas avaliações que envolvam a atuação conjunta entre os órgãos de segurança pública ou de persecução penal, observadas as respectivas competências constitucionais e legais,
Por essas e inúmeras outras novidades da Lei 14.735/23 que a consideramos revolucionária. Inclusive prevendo a capacitação profissional continuada, integrada e isonômica, com os custos sob a responsabilidade do órgão policial.
E consideramos entre os mais relevantes enunciados os artigos 4º, 5º e 6º que apresentam os princípios, diretrizes e competências das polícias civis, entregando 65 (sessenta e cinco) incisos, além dos parágrafos. Esses dispositivos tem uma profunda capacidade transformadora da realidade das instituições policiais civis.
Nessas poucas linhas é impossível exaurir tantas novidades relevantes. Mas não podemos concluir este texto sem enfatizar a luz que a lei joga na autonomia institucional, na valorização e proteção dos servidores, a ênfase na repressão qualificada dos crimes de corrupção e contra a administração pública, além de traçar regramentos técnicos para distribuição de efetivo e criação de órgãos.
O Congresso Nacional forneceu aquilo que tanto pedíamos, agora é conosco o trabalho de aplicar cada dispositivo e revolucionar nossas instituições.
* Waldek Fachinelli Cavalcante. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Goiás; Mestre em Ciências Policiais – na Especialização Criminologia e Investigação Criminal pelo Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna/Lisboa/Portugal, reconhecido pela Universidade de Brasília – UnB como Mestrado em Direito; Especialista em Direito Constitucional pela UFG; Especialista em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade Anhanguera Uniderp; Experiência no ensino de Direito e Criminologia. Professor, tutor e conteudista do programa de pós-graduação em Segurança Pública do Instituto Federal de Brasília; professor, tutor e conteudista da Escola Superior de Polícia Civil do Distrito Federal; professor da pós-graduação do IEJUR. Foi conselheiro do Conselho Distrital de Segurança Pública e Coordenador do Sistema Prisional do Distrito Federal. Atualmente na Coordenação de Repressão às Drogas da PCDF. Delegado de Polícia – Polícia Civil do Distrito Federal; foi servidor da Justiça Federal e militar de carreira do Exército. Autor do livro Criminologia e Crime Organizado: Política criminal baseada em evidências para o efetivo controle do crime. Autor de artigos científicos jurídicos e criminológicos.
Referências: BRASIL. Lei nº 14.735, de 23 de novembro de 2023. Institui a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, dispõe sobre suas normas gerais de funcionamento e dá outras providências. Diário Oficial da União, 2023.
ADEPOL DO BRASIL – 05/07/2024