A PEC DA SEGURANÇA PÚBLICA E A CRISE DE COMPETÊNCIAS

A proposta de emenda à Constituição Federal, denominada “PEC da Segurança Pública”, de autoria do atual Ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, está sob análise e poderá ser encaminhada ao Congresso Nacional pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

O texto da PEC foi apresentada por Lula e Lewandowski aos governadores e representantes das diversas esferas do poder em sessão pública realizada no Palácio do Planalto (Brasília – DF).

No terreno político, trata-se de um movimento do Governo Federal para ocupar espaços na segurança pública, em uma tentativa de reverter as dificuldades que vem enfrentando nessa área.

O anteprojeto da PEC propõe incluir o Susp na Constituição Federal, atualizar as competências da PF e da PRF na Carta Magna e constitucionalizar os fundos nacionais de Segurança Pública e Penitenciário, conforme a ementa:

“Altera os arts. 21, 22, 23, 24 e 144 a fim de conferir à União a competência para estabelecer a política nacional de segurança pública e defesa social, que compreenderá o sistema penitenciário e o respectivo plano; atribuir à União a competência privativa para legislar sobre normas gerais de segurança pública, defesa social e sistema penitenciário; fixar a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para prover os meios destinados à manutenção da segurança pública; atribuir à União, aos Estados e ao Distrito Federal a competência concorrente para legislar sobre segurança pública e defesa social; estender as funções da Polícia Federal e criar a polícia ostensiva federal, em substituição à Polícia Rodoviária Federal, ampliando suas atribuições mediante o aproveitamento de seus recursos materiais e humanos; e instituir o Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária.”

Além das reflexões sobre os tópicos da pretendida PEC, é essencial analisá-la sob a ótica da “Crise de atribuições e confronto de competências entre os órgãos de segurança pública nos níveis federal, estadual e municipal.”

Dito isso, analisemos os itens da PEC que podem ensejar o agravamento desse conflito:

  1. Maior poder da União para estabelecer normas gerais: A PEC objetiva conceder à União o poder de produzir normas gerais de observância obrigatória para estados e municípios como diretrizes para uma política nacional de segurança pública ou regulamentação de atividades específicas, a exemplo do uso de câmeras corporais por agentes policiais. Nesse caso estamos tratando de competência constitucional para legislar. Isso nos chama atenção pelo controle da iniciativa e tramitação da produção legislativa na Presidência da República, Câmara e Senado, para dispor sobre assuntos da segurança pública. A depender de como estiver redigido e do tópico de inserção desse dispositivo na Constituição Federal, o Presidente da República e os parlamentares federais terão um certo monopólio sobre a elaboração das leis de segurança pública, ao exercerem as competências legislativas: 1.1) Privativa (art. 22 da CF), quando somente eles próprios podem criar leis ou autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas relacionadas a matéria; 1.2) Concorrente entre União, Estados e Distrito Federal (art. 24 da CF), cenário no qual a União é limitada a estabelecer normas gerais e aos Estados e ao Distrito Federal, em regra, cabe exercer a competência suplementar, inclusive, inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades, e havendo conflito entre uma lei estadual e uma lei federal que trate de normas gerais, a legislação federal prevalece, e a eficácia da lei estadual será suspensa na parte que for contrária.
  2. Ampliação das atribuições da Polícia Federal: a proposta pode fixar explicitamente na Constituição que será dever da Polícia Federal combater organizações criminosas (Orcrim) e milícias privadas, além de crimes ambientais em áreas específicas, como matas, florestas e unidades de conservação. Aqui também temos pontos sensíveis de intersecção ou até mesmo de colisão quanto às atribuições, sobretudo relacionadas aos demais órgãos da segurança pública. Uma das questões centrais está no futuro da investigação criminal sobre organizações criminosas. Atualmente, compete às policias judiciárias, federal e civil, a apuração das infrações penais dessa natureza. Grosso modo, à Polícia Federal compete investigar organizações cujas práticas criminosas tenham repercussão interestadual ou transnacional, já à Polícia Civil compete investigar as Orcrim na base territorial do seu respectivo estado, ainda que as apurações alcancem desdobramentos em outro estado ou até mesmo país. Com efeito, a partir de eventual alteração implementada pela PEC, no sentido de que o “combate” (expressão vaga, aberta e imprecisa) às Orcrim será uma atribuição da Polícia Federal, restaria esvaziado o exercício das atividades de investigação dos crimes dessa natureza pela Polícia Civil, caso não fique muito bem delineada a esfera de atuação de cada órgão nessa área.
  3. Criação de uma nova polícia derivada da PRF: Propõe transformar a Polícia Rodoviária Federal em uma polícia com atuação ostensiva nacional. Sua atuação não estaria restrita ao patrulhamento das rodovias federais (função para a qual foi originariamente concebida), mas também ao policiamento em ferrovias e hidrovias, podendo ser solicitada para atuar mediante rondas ostensivas nas ruas, em toda extensão dos Estados solicitantes, semelhante ao que acontece com a Força Nacional. A proposta colide principalmente com o papel desempenhado pelas Polícias Militares, às quais competem o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, subordinadas aos respectivos Governadores. Ainda que a PEC faça uma delimitação circunstancial para atuação da nova polícia ostensiva federal quando “for solicitada”, permanece a intersecção entre atribuições, de modo que o policiamento fardado nas ruas será realizado por essa nova força, à semelhança do que já vem sendo feito também pelas Guardas Municipais. De um lado, o patrulhamento das ruas poderá ser realizado pela polícia ostensiva federal, e de outro, pela Guardas Municipais, resultando em uma espécie de complemento do policiamento ostensivo nos espaços de patrulhamento das Polícias Militares;
  4. Inclusão do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) na Constituição Federal: A proposta visa inserir o SUSP na Constituição, atualmente previsto em uma Lei Federal (n. 13.675/2028), elevando, portanto, seu status normativo. O aspecto positivo do sistema está na determinação de que os órgãos da segurança pública atuem de forma cooperativa, sistêmica e harmônica, nos limites de suas competências. Dito de outra forma, seria o trabalho conjunto realizado pelos integrantes das forças de segurança pública, respeitando-se as atribuições previamente definidas para cada um. Mas essa possível constitucionalização envolve desdobramentos jurídicos, operacionais e financeiros, os quais invariavelmente serão regulados por normas infraconstitucionais, inclusive, do mesmo patamar da atual Lei do SUSP. Isso levanta questionamentos quanto aos resultados práticos dessa constitucionalização.
  5. Criação do Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária com vedação ao seu contingenciamento: Essa criação será realizada pela unificação dos fundos Nacional de Segurança Pública – FNSP (Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018) e Penitenciário Nacional – FUNPEN (Lei Complementar nº 79, de 7 de janeiro de 1994). Segundo a justificativa do Governo Federal, essa proposta surge da necessidade de investimentos adequados para prevenir e reprimir atividades criminosas. O Fundo deve ser criado por legislação infraconstitucional e pode coexistir com outros fundos necessários, devendo suas fontes de recursos ser claramente indicadas. Além dos aspectos da nova configuração unificada, visando garantir a eficácia das políticas implementadas, talvez como ponto mais relevante e extremamente positivo da PEC, esteja a garantir a proibição de contingenciamento do Fundo, seguindo o modelo de proteção atualmente aplicado por legislação e decisão judicial no âmbito do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional. Portanto, o grande mérito da PEC é a constitucionalização da proibição ao contingenciamento dos recursos financeiros do novo Fundo.

Essas possíveis alterações revelam inquietações sobre uma avalição dos impactos futuros na distribuição de competências e atribuições, além da alocação dos recursos públicos. Isso merece bastante atenção, considerando os objetivos almejados de eficiência e otimização do sistema de segurança pública do país. Nesse sentido, visando contribuir ainda mais para o debate, pensemos em respostas para os seguintes questionamentos:

A Lei Federal do SUSP, que está valendo desde 2018, não vem sendo cumprida ao ponto de termos que constitucionalizá-la? Constitucionalizar o tema fará com que os órgãos da segurança pública finalmente trabalhem de maneira integrada e com o fiel respeito aos limites das respectivas competências e atribuições? Qual o impacto financeiro dessa constitucionalização? É possível alcançar o mesmo resultado, ou seja, a integração entre as forças de segurança pública, com alterações legislativas infraconstitucionais, a exemplo da própria Lei do SUSP?

Outro ponto que merece destaque é a polarização política entre direita e esquerda. É evidente que há uma ausência de diálogo interinstitucional, sobretudo entre os polos da extrema direita e extrema esquerda, ocasionando a adoção de medidas isoladas, algumas das quais disfuncionais, de modo que cada lado dessa díade atua para contemplar sua respectiva parcela do eleitorado e contrapor o lado adversário. Isso reflete a falta de consensos entre os tomadores de decisões.

Para superar essas ameaças, é muito importante o diálogo entre as instâncias de poder e consolidar acordos entre os servidores afetados, mas isso deve ser orientado por diagnósticos confiáveis e pela participação de todas as partes interessadas. Essas premissas são indispensáveis para assegurar que propostas apresentadas na área da segurança pública sejam adequadas, efetivamente cumpridas e atinjam os resultados desejados.

À luz dessas reflexões, a PEC indica uma busca por protagonismo, trazendo a sensação de que “algo está sendo feito”. Além disso, as alterações podem acrescentar desafios de ordem prática, como o enfraquecimento do já conturbado sistema de atribuições dos órgãos da segurança pública. Assim, uma boa oportunidade para redução dos riscos à proposta está no diálogo prévio e profundo do Governo federal não apenas com Governadores, mas também, e principalmente, com os representantes dos servidores públicos da segurança pública (o que não tem ocorrido até o momento).

Confira o artigo no site do ConJur. Clique Aqui.

André Santos Pereira

Delegado de Polícia,
Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP) especialista em inteligência policial e segurança pública.

About Adepol Adepol

Veja também

Câmara aprova projeto que prevê novo tipo de flagrante

Proposta cria o chamado “flagrante provado”; texto vai ao Senado Fonte: Agência Câmara de Notícias …

Policial militar é preso após agredir delegado durante blitz em Vitória

Polícia Militar afirmou que apura a conduta do policial Redação Tribuna Online 25/11/2024 Quartel de …

RESPOSTA PÚBLICA DA ADEPOL DO BRASIL AO ESTUDO IMPRECISO DO ‘INSTITUTO SOU DA PAZ’, DENOMINADO ‘ONDE MORA A IMPUNIDADE?’

Em resposta ao recente estudo divulgado pelo “Instituto Sou da Paz”, denominado “Onde Mora a …