Por Adriano Sousa Costa, Aline Lopes e Fernanda Moretzsohn
4 de outubro de 2022
Contextualização
O “estelionato amoroso ou sentimental” é uma expressão que vem sendo cada vez mais utilizada no mundo jurídico, mas nem sempre na acepção que realmente deveria sê-lo.
O desvirtuamento de tal expressão para contextos em que não há um verdadeiro crime como pano de fundo cria a falsa percepção de que os órgãos policiais deveriam atuar nesses casos, transportando situações cíveis para o debate na senda criminal.
O primeiro bom exemplo do uso desvirtuado da nomenclatura “estelionato” pelos próprios tribunais superiores dá-se em face do famigerado “estelionato judicial”. Ainda que prevalentemente tal fraude processual não seja considerada típica (HC 664.970/PR — STJ), tal terminologia continua sendo utilizada.
Mas o principal exemplo do emprego inadequado da expressão é no estelionato amoroso. Não é incomum que pessoas procurem a delegacia de polícia pois são levadas a crer, pela própria expressão de regência do instituto, que há um crime a se apurar. O equívoco é catalisado pelo próprio sistema persecutório, vez que é nele que se consagram e se replicam esse tipo de expressões atécnicas, transpassando a mensagem equivocada para a população de que a persecução penal pode ocorrer nesses casos.
Da natureza civilista da lesão sofrida e do Direito Penal como ultima ratio
O termo “estelionato sentimental” deriva, na maioria das vezes, do anseio de reparação de uma das partes envolvidas em um relacionamento, vínculo este que pode ter lhe feito suportar ônus econômico assimétrico na manutenção do núcleo amoroso.
É razoável que, ao se doarem financeiramente pelo companheiro, após o término frustrante do relacionamento, as “vítimas” busquem por algum tipo de reparação do ex-parceiro pela quebra de expectativa de vida derivada do rompimento do relacionamento.
Não se deslegitima a busca por reparação pecuniária daquele que se sente lesado, até mesmo em homenagem ao princípio da boa-fé e da vedação ao enriquecimento ilícito. Principalmente quando se percebe que há promessa futura de algum tipo de retribuição para aquele que, atualmente, aporta recursos na manutenção da qualidade de vida do outro. Mas daí pressupor de que isso também permite a imputação criminal do estelionato parece um exagero.
“PROCESSO CIVIL. TÉRMINO DE RELACIONAMENTO AMOROSO. DANOS MATERIAIS COMPROVADOS. RESSARCIMENTO. VEDAÇÃO AO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. ABUSO DO DIREITO. BOA FÉ OBJETIVA. PROBIDADE. SENTENÇA MANTIDA. 1. […] depreendendo-se que a autora/ apelada efetuou continuadas transferências ao réu; fez pagamentos de dívidas em instituições financeiras em nome do apelado/réu; adquiriu bens móveis tais como roupas, calcados e aparelho de telefonia celular; efetuou o pagamento de contas telefônicas e assumiu o pagamento de diversas despesas por ele realizadas, assim agindo embalada na esperança de manter o relacionamento amoroso que existia entre a ora demandante. Corrobora-se, ainda e no mesmo sentido, as promessas realizadas pelo varão-réu no sentido de que, assim que voltasse a ter estabilidade financeira, ressarciria os valores que obteve de sua vítima, no curso da relação. 2. Ao prometer devolução dos préstimos obtidos, criou-se para a vítima a justa expectativa de que receberia de volta referidos valores. A restituição imposta pela sentença tem o condão de afastar o enriquecimento sem causa, sendo tal fenômeno repudiado pelo direito e pela norma […].” (TJ-DF. Acórdão n.866800, 20130110467950APC, relator: CARLOS RODRIGUES, revisor: ANGELO CANDUCCI PASSARELI, 5ª Turma Cível, data de julgamento: 8/4/2015, publicado no DJE: 19/5/2015. P. 317).
Por isso é que, a nosso ver, a expressão estelionato amoroso ou sentimental deveria ficar restrita às situações de o autor do fato se aproximar insidiosamente da vítima, valendo-se do meio virtual e de uma eventual vulnerabilidade emocional da vítima, conquistando sua confiança e, após, solicitar-lhe ou exigir dela presentes e favores financeiros.
O Direito Penal é a extrema ratio de qualquer sistema jurídico. A ele cabe a intervenção quando as demais sendas do Direito se mostrarem aprioristicamente insuficientes para garantir a tutela dos bens jurídicos mais caros da sociedade. Para isso conta com ferramentas gravosas, inclusive o encarceramento cautelar.
E o Direito Penal sempre está um passo atrás das mudanças da sociedade. O legislador só atua no sentido de incriminar uma determinada conduta quando, percebendo-a na sociedade, vislumbra o risco social nela incrustado.
Talvez seja essa a razão para que o estelionato amoroso não tenha sido contemplado expressamente em nenhum diploma legal. Seja porque não possui suficiente magnitude lesiva aos bens jurídicos protegidos, seja porque o legislador, ainda que tenha percebido a sua relevância, não tenha decidido concretizar tal conduta em um tipo penal incriminador próprio.
A abrangência do artigo 171 do Código Penal
De uma ou de outra forma, o estelionato sempre requer do autor do fato a vontade e a consciência dirigidas à causação de prejuízo econômico para a vítima e, por corolário, a obtenção de vantagem indevida.
Daí, por ser um bem disponível, o patrimônio dado pela vítima como moeda de troca em um relacionamento amoroso não perfaz o tipo de prejuízo e de vantagem que o artigo 171 do Código Penal requer para a consumação, ou seja, os de natureza ilícita.
“Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.” (Código Penal)
Há quem transacione licitamente bens jurídicos disponíveis pela manutenção da boa qualidade de vida, a exemplo das práticas típicas das sugar babies, sugar daddies, sugar mommies, sugar boys etc.. Relacionamentos por conveniência não são criminalizados em face do princípio da alteridade, ainda que fujam a um padrão ortodoxo de condutas moralmente desejáveis pela sociedade.
Existem outras formas de se proteger alguns grupos de pessoas mais vulneráveis a trocas assimétricas, inclusive. Por exemplo, a fixação de regimes de bens necessários para o casamento de pessoas com mais de 70 anos (artigo 1.641, inciso II do Código Civil). E tal temática, inclusive, está na pendência de decisão definitiva do STF acerca da constitucionalidade do referido artigo do Código Civil (ARE 1.309.642).
Fato é que não se está aqui propagando a impunidade ou fechando os olhos para práticas ilícitas corriqueiras e imorais. Apenas advoga-se que a reparação ao bem jurídico violado, no caso o patrimônio, seria mais eficaz se buscada no âmbito civil.
É que não pode o Direito Penal servir como vingança privada de uma vítima que teve seu sentimento ferido e se sentiu enganada por ter contribuído financeiramente de forma maior do que o companheiro.
Do crime de estelionato de fundo amoroso
É importante diferenciar o que realmente é um estelionato com fundo amoroso da costumeira e banalizada conceituação de estelionato sentimental.
No estelionato com fundo amoroso o criminoso se utiliza de ferramentas de persuasão amorosa para se aproximar da vítima e, então, obter vantagem ilícita atual ou futura.
Geralmente, a fraude se consubstancia pelo falso interesse amoroso do estelionatário (motivação fraudulenta presente desde antes do início da relação) e pela intenção deliberada do agente de drenar o máximo de vantagens da vítima, causando-lhe prejuízo patrimonial em favor de seu locupletamento ilícito.
E não é só o repasse de dinheiro que os parasitas amorosos podem almejar. No caso de relacionamentos que perdurem por tempo maior, buscam a contemplação em testamentos ou mesmo a transferência de bens para seu nome, simulando inclusive contratos de compra-e-venda e inserção em holdings patrimoniais. Tudo em prol do binômio vantagem e prejuízo econômicos ilícitos.
Golpes do falso marido, golpe do soldado americano etc. são bons exemplos dos fake lovers. Nestes casos, inclusive, pode ser que a vítima sequer encontre pessoalmente com seu algoz, sendo mais comum a manutenção de relativamente duradouro relacionamento virtual.
Do projeto de lei
Diante do aumento exponencial de casos semelhantes, e pelas idiossincrasias que tais contextos trazem a reboque, a Câmara dos Deputados, em 4/8/2022, aprovou a subemenda substitutiva ao projeto de Lei n° 4.229/2015, que traz a nomenclatura “estelionato emocional“, prevendo pena superior para para o crime de estelionato cometido em relações amorosas e contra pessoas idosas e vulneráveis, e estabelece punições para quem utilizar as redes sociais para aplicar o golpe.
Nos termos da proposta que segue para aprovação do Senado Federal, a conduta daquele que induzir a vítima, com a promessa de constituição de relação afetiva, a entregar bens ou valores para si ou para outrem, será tipificada como estelionato sentimental, cuja pena, de reclusão, de dois a seis anos, poderá ser triplicada, em se tratando de vítima idosa ou vulnerável, e ainda, ser aumentada de ⅓ até a metade caso seja vultoso o prejuízo causado à vítima em consequência do crime.
Conforme consta da exposição de motivos do texto aprovado, “cresce a cada dia o número de estelionatos praticados por pessoas que se aproximam de outra com a finalidade de se apropriar de seus bens, aproveitando-se de uma possível vulnerabilidade emocional e amorosa”.
Segundo o relator do projeto, o avanço da internet e das redes sociais potencializou os casos de estelionato. “O criminoso utiliza-se da facilidade do meio virtual para enganar suas vítimas, o que enseja um agravamento da reprimenda a ser imposta nesses casos”.
Da tipologia criminal aplicável ao caso concreto
Se a conduta for tipificada como estelionato, o bem jurídico tutelado deverá ser somente o patrimônio. E essa não parece ser a realidade.
Afinal, mais do que o patrimônio, a incolumidade psíquica da vítima e a sua própria dignidade sexual podem ser abaladas neste tipo de golpe amoroso. Por isso é tão importante analisar adequadamente o contexto para apurar qual a melhor capitulação aplicável ao caso concreto.
Não se descarta que haja a ocorrência de violência psicológica contra a mulher, ainda que o estelionato sentimental não se restrinja a vítimas do sexo feminino. Entretanto acreditamos que dificilmente haverá a incidência do artigo 147-B do Código Penal (violência psicológica contra a mulher), pois tal infração penal é expressamente subsidiária.
Ou seja, se a regra é que o criminoso almeja a atingir o patrimônio da vítima, normalmente o crime em tela vai ceder espaço para tal crime de valor. Os elementos constitutivos do artigo 147-B do Código Penal, lembre-se, voltam-se para a preservação exclusiva da integridade psicológica da mulher:
“Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.” (Código Penal)
Além disso, a dignidade sexual pode ser vulnerada como pano de fundo para a lesão patrimonial desejada. Não é incomum que, pela conexão sexual, os criminosos busquem reduzir a resistência da vítima, drenando com maior facilidade o seu patrimônio.
Nesta senda, merece destaque o crime do artigo 215 do Código Penal, o qual é costumeiramente conhecido como “estelionato sexual”. A nosso ver, se visualizado pelo espectro do parágrafo único do referido tipo penal, esse sim seria o verdadeiro estelionato amoroso. Veja:
“Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.” (Código Penal)
O artigo 215, parágrafo único, do Código Penal contempla perfeitamente o que, via de regra, é utilizado pelos autores de crimes como estratégia principal de enganação: o envolvimento sexual com a vítima voltado para facilitar a consecução das vantagens econômicas espúrias. No caso, esta é a tipologia que melhor se amolda a boa parte dos casos concretos, e não a de estelionato (artigo 171 do Código Penal). Até mesmo porque a pena daquela infração é maior do que a do estelionato, o que nos parece absolutamente proporcional em face da existência de lesão a vários bens jurídicos (patrimônio, integridade psicológica e dignidade sexual da vítima).
De toda sorte, se o golpe for perpetrado pela internet, sem ter havido qualquer contato pessoal (e sexual) entre as partes, há que se restringir a incidência ao artigo 171 do Código Penal. Não se pode descartar a subsunção à modalidade de fraude eletrônica, principalmente quando o criminoso vai coletando informações da vítima para criar um história fraudulenta ainda mais envolvente.
“Art. 171. § 2º-A. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.” (Código Penal).
Por fim, é possível também a ocorrência de extorsões com fundo amoroso (artigo 158 do Código Penal). Comum é que vítimas sejam envolvidas sentimentalmente por criminosos e convencidas a encaminharem fotografias sensuais para o fake lover, o qual se utiliza de intermediário para realizar extorsões posteriores (sextorsão). Essa infração é muito grave, tanto é que as penas deste crime são de 4 a 10 anos, e multa. Exemplo dessa incidência mais gravosa está no HC 216.924 / SP, de 29/6/2022, o ministro GILMAR MENDES. Vejamos:
“Dentre os crimes praticados por essa organização e investigados no curso do presente procedimento, destacam-se os crimes de estelionato sentimental, extorsão e lavagem de dinheiro.[…] Para a prática do crime de estelionato, o indivíduo integrante do grupo cuja função é conhecida como ‘fake lover‘ cria um perfil falso, em um site de relacionamento ou rede social, e inicia contato com a vítima por meio deste mesmo site ou da rede social. Há perfis falsos masculinos e femininos, mas, normalmente, o ‘fake lover‘ é um homem. No início do relacionamento, o criminoso se identifica como um militar americano em missão fora do país ou como pessoa estrangeira bem sucedida, que almeja vir morar no Brasil. Após algum tempo de contato e já mantendo um falso namoro virtual, inclusive com o envio de fotos, documentos e dados pessoais falsos, o criminoso informa que deseja enviar algo muito valioso para o Brasil, como por exemplo, uma mala de dinheiro que recebeu como recompensa da ONU e que ao chegar ao país iria casar com a vítima e viver com o respectivo dinheiro. Aí se inicia o golpe. Após aceitar receber a mala, a vítima recebe uma ligação informando que a encomenda chegou e que é necessário pagar uma taxa para liberação na alfândega. Assim que o pagamento é feito, são inventadas novas histórias para retirar mais dinheiro da vítima, como, por exemplo que o pagamento deveria ser em dólar, ou que há necessidade de pagamento da transportadora e depois que há necessidade de pagamento de escolta, pois o produto é valioso demais, enfim, são criadas diversos entraves e que para solucioná-lo a vítima deveria efetuar mais um pagamento. Após retirar o máximo de dinheiro das vítimas, apenas com falsas narrativas, em muitos casos, quando a vítima se nega a enviar mais dinheiro, ela passa a ser extorquida, com ameaças de prisão, por ter aceitado receber encomenda ilegal. Em outros casos, após o período de namoro virtual e o envio de fotos íntimas, as vítimas são extorquidas a efetuar o pagamento de valores para que as fotos não sejam vazadas na internet.“
Em resumo, é preciso se atentar para as nuances concretas de cada golpe perpetrado para buscar a melhor capitulação legal. Mas isso já indica que o uso indiscriminado da terminologia estelionato sentimental pode conduzir a dois equívocos interpretativos graves: 1- todo benefício econômico assimétrico alcançado por uma das partes no relacionamento amoroso será considerado estelionato; 2- só o estelionato (artigo 171 do Código Penal) pode incidir no caso concreto, quando for a conduta realmente criminosa.
Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito e doutorando em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.
Aline Lopes é delegada de Polícia Civil de Goiás e professora de cursos preparatórios.
Fernanda Moretzsohn é delegada de Polícia Civil no estado do Paraná, pós-graduada em Direito Público e pós-graduada em Direito LGBTQIA+, autora pela editora Umanos, colunista Conjur (Questão de Gênero), professora da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e diretora jurídica da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná (Adepol-PR).