Crime de maus-tratos a animais qualificado – lei 14.064 – primeiros apontamentos

Por Eduardo Luiz Santos Cabette e Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette

A opção pela sanção foi correta, no final das contas? A pena prevista para os maus-tratos contra animais é, em si, e por si, alta demais, ou ela apenas destoa das penas de outros tipos penais?

1-INTRODUÇÃO


O crime de maus – tratos a animais, previsto no artigo 32 da Lei Ambiental (Lei 9.605/98), vinha sendo objeto de muitas críticas devido à brandura das penas ali previstas, que o classificavam, em qualquer caso, como infração de menor potencial ofensivo.

Em atendimento a essa reação crítica da sociedade diante da subestimação de certos atos crudelíssimos perpetrados contra animais por pessoas aparentemente despidas de qualquer sentimento de empatia ou piedade, o Congresso Nacional aprovou, e o Presidente da República sancionou, a Lei 14.064/20, para criar uma forma qualificada dessa infração penal, com previsão de pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda de animais.

Como de costume, um caso rumoroso foi o estopim para a aprovação do texto. Conforme expõe Leitão Júnior, a Lei 14.064/20 ganhou a denominação de “Lei Sansão”, tendo em vista o episódio ocorrido em Confins – MG, no qual um cachorro da raça pitbull “teve as patas traseiras decepadas”, gerando enorme “comoção em todo o Brasil”. [1]

Neste trabalho proceder-se-á, mediante pesquisa bibliográfica, a uma análise inicial crítica do novo dispositivo, começando por uma breve exposição histórica, cultural e conceitual do tema e partindo para alguns comentários relevantes acerca da inovação legislativa. A pesquisa bibliográfica será, obviamente, limitada, porquanto não se dispõe, neste momento inicial, de grande material específico, mas tão somente dos estudos já levados a termo pela doutrina a respeito da redação original do artigo 32 da Lei Ambiental.

Ao final, será procedida a uma revisão dos tópicos desenvolvidos ao longo do texto, apresentando um desfecho conclusivo.

2-BREVE EXPOSIÇÃO HISTÓRICA, CULTURAL E CONCEITUAL

A prática de atos cruéis contra animais tem sido considerada repugnante, mas, em geral, com sustento em um conceito antropocêntrico das relações entre humanos e animais, sem levar em consideração a característica da sensibilidade desses seres vivos. Não obstante, no desenvolver histórico da visão do tema, tem sido, aos poucos, inserido um pensamento que também leva em conta a realidade de que os animais são seres capazes de sofrimento e prazer, o que impõe certa consideração especial, embora sem a pretensão exagerada de algumas correntes (v.g. “Ecologia Profunda”) de equiparar, sem distinção, seres humanos e animais. Certamente, é preciso promover um equilíbrio entre os extremos da zoologização do homem e da reificação próxima à natureza inanimada dos animais.

Para a esmagadora maioria da doutrina, o Direito protege os animais somente para proteger o homem. É francamente minoritária a corrente que defende a tutela dos animais sob um enfoque ecológico profundo, considerando-os como “seres vivos com personalidade autônoma ‘sui generis’”, devendo ser “protegidos como sujeitos de direito, dotados de percepções e sensações”.[2]

Mas, talvez haja um tipo penal específico que tutele diversamente os interesses próprios dos animais, independente de sua eventual função ecológica. Trata-se da antiga contravenção (art. 64, LCP) e atual crime (art. 32 da Lei 9605/98) de “Crueldade contra animais”.

Neste caso, é evidente que a conduta incriminada não tem por característica a necessidade de avaliação de dano à função ecológica do ser vivo. Aliás, o tipo penal em questão abrange não somente os animais silvestres, como também os domésticos e domesticados, nativos ou exóticos. São tutelados os animais de maneira geral, independentemente de sua inserção na função de equilíbrio ambiental.

A tipificação penal destacada é dotada de todo o potencial para oportunizar uma inovada abordagem da tutela dos Direitos dos Animais, inclusive no bojo de uma interpretação sistemática com o antigo Decreto 24.645, de 10.07.1934, que arrola, pormenorizadamente, condutas de maus – tratos a animais, as quais podem servir de subsídio legal à interpretação da norma criminal.

Sob o pálio dessa normatização protetiva, passariam os animais a serem tutelados, tendo em vista sua capacidade de sentimento, de experienciarem prazer e dor. Tais atributos dizem respeito a valores e interesses próprios e independentes dos animais, não necessitando, para sua legitimação, de eventual inserção em interesses humanos para uma espécie de tutela mediata ou secundária. Ampliando a interpretação sistemática acima mencionada, de modo a transcender à legislação ordinária, subindo na escala hierárquico – normativa até a Constituição Federal, encontrar-se-á fundamento para essa tutela em dispositivo expresso no artigo 225, § 1º, VII, “in fine”. A Lei Maior determina que o Poder Público deva proteger a fauna (sentido amplo), vedando práticas que “submetam os animais a crueldade”.

Como se percebe, tudo indicaria para uma devida interpretação não – antropocêntrica das normas sobreditas. No entanto, a força da perspectiva antropocêntrica no Direito é gigantesca, levando a doutrina a seguir uma linha exegética que privilegia, mesmo nesses dispositivos, algum fator humano.

Seguindo uma ordem cronológica, pode-se analisar inicialmente a antiga contravenção penal de Crueldade contra animais. Como já dito, vinha ela prevista no artigo 64 da LCP. Tal dispositivo abrigava-se no Capítulo VII da legislação sob comento, cujo título é “Das contravenções relativas à polícia de costumes”.

Numa breve passada de olhos pelos tipos contravencionais que acompanham aquele sob comento, constata-se que sua previsão certamente não se realizou considerando a defesa dos Direitos dos Animais, mas sim, tendo em mira a regulação da conduta humana no seio da sociedade, visando a, especialmente, certa atuação moralizante do Direito Penal. Os tipos contravencionais ali expostos repudiam condutas que atingem o sentimento moral, o decoro social (v.g. jogos de azar, embriaguez escandalosa, mendicância (ora revogada pela Lei 11.983/09), vadiagem, importunação ofensiva ao pudor, perturbação da tranquilidade). Nada indica, pela posição topográfica do artigo 64, LCP, a existência de uma preocupação com o bem – estar dos animais em si. A tutela penal refere-se, na verdade, como nos outros tipos ali abrigados, ao sentimento humano de repúdio a atos cruéis, os quais causam suscetibilidades nas pessoas sensíveis e podem, talvez, fomentar a crueldade intra – humana.

Ao comentar o objetivo do Capítulo VII da Lei das Contravenções Penais, Valdir Sznick afirma que ele visa “a proteção aos bons costumes e à moralidade da sociedade”, conceituando “bons costumes” como “a virtude, a moral pública, a decência e o pudor público”.[3] Na análise da motivação do dispositivo do artigo 64, LCP, faz menção à defesa da sensibilidade humana para com os seres irracionais, a qual seria atingida por condutas cruéis também reveladoras de crueldade dos homens cujos sentimentos morais estariam deturpados.[4]

Na doutrina internacional, a interpretação dada a dispositivos similares não é dissonante.

Garraud aduz que “o fim desta lei não é conferir direitos aos animais, (…), ela deseja somente punir os atos de crueldade que, em razão de sua gravidade e de sua publicidade, são de natureza e exercem influência penosa sobre os costumes”.[5]

Por sua vez, Sabatini advoga o mesmo entendimento ao asseverar que a razão da punibilidade de tais fatos, consiste na ofensa ao sentimento de piedade inato ao homem. Ainda que os atos de crueldade se dirijam contra os animais, eles provocam repulsa e horror. A crueldade, de qualquer espécie, de qualquer modo que se deseja justificar, contrasta com a delicadeza dos costumes e com o de outros sofrimentos que passam dos seres inferiores ao próprio semelhante.[6]

Voltando ao Brasil, também Damásio concorda que o sujeito passivo da então contravenção penal seria a coletividade humana, sendo os animais os objetos materiais da infração, jamais seus sujeitos passivos.[7]

Em obra coletiva, Wilson Ninno comenta a Lei das Contravenções Penais, externando o posicionamento jurisprudencial que sempre imperou acerca da identificação da “mens legis” do dispositivo do artigo 64, LCP e de seu sujeito passivo, de acordo com o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, onde eram encontráveis reiteradas decisões, apontando que aquilo “que a lei tutela, no dispositivo em apreço, é o sentimento ético – social de humanidade para com os animais” [8], de maneira que o sujeito passivo da conduta é o Estado.[9]

Anote-se, ainda, que essa preocupação voltada somente para o sentimento humano torna-se patente quando a legislação restringe-se a vetar como ilícitas as experiências científicas ou atividades didáticas dolorosas ou cruéis em animais vivos, apenas se forem realizadas em local “público ou exposto ao público” (§ 1º do art. 64, LCP). Isso escancara ainda mais o fato de que a preocupação do legislador, na época, voltava-se, tão somente, ao sentimento de pudor humano ante os atos de crueldade, pois desde que realizado longe dos olhares incomodados ou suscetíveis de homens e mulheres, os atos de crueldade eram moral e legalmente tolerados, sem nenhuma consideração quanto aos sentimentos dos outros seres vivos.

Mas, houve uma importante reforma legal acerca do tema em discussão. A Lei 9605/98 erigiu a outrora contravenção em crime de crueldade contra animais, em seu artigo 32. Será que isso teve o condão de mudar a perspectiva com que o novo ditame legal seria interpretado e aplicado?

Infelizmente, a resposta é negativa.

Malgrado alguns avanços obtidos, a base antropocêntrica do Direito restou praticamente intocada.

A manutenção da ideia segundo a qual os animais são apenas objetos e não sujeitos passivos do crime é praticamente pacífica na doutrina.

Para Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas, os crimes ambientais em geral têm como sujeito passivo a “coletividade”, entendida como o conjunto “de todos os cidadãos considerados ‘uti singuli’”, ou seja as pessoas, no sentido de seres humanos prejudicados coletivamente pela degradação ambiental.[10] No que tange ao crime de crueldade contra animais, os autores não destoam desta orientação, afirmando que o sujeito passivo é a coletividade e os animais são meros objetos materiais do ilícito.[11]

Luís Paulo Sirvinskas pouco difere. Apenas procura individualizar o sujeito passivo, indicando não a ideia vaga, difusa da coletividade, mas apontando o Estado e mais especificamente a União Federal, trazendo à baila o disposto no artigo 1º da Lei 5197/67. Quanto às espécies da fauna, segue tomando-as como objetos materiais das condutas incriminadas.[12]

Ainda na mesma linha de pensamento e, de certa forma, revivendo a tutela dos costumes preconizada pela legislação contravencional revogada, manifesta-se Luciana Caetano da Silva:

Quanto ao ‘sujeito passivo’ dos delitos faunísticos, ao contrário do que se poderia deduzir num primeiro momento, não são os animais, muito embora sejam eles que suportam a violência física ou psíquica. Os animais jamais serão sujeitos de delitos. Figuraram sempre no âmbito do Direito Penal como objeto material da conduta criminosa. Mesmo nas infrações de maus – tratos a animais (art. 32 da Lei dos Crimes Ambientais), estes ‘não têm significação alguma no processo individualizador da norma penal, porque a sanção cominada se refere a um delito praticado’ contra a coletividade ‘ferida ela em seus princípios morais’, nos seus ‘bons costumes, sentimentos comuns de humanidade no que se refere a animais’.

Portanto, o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão nos delitos faunísticos, (…), será a coletividade, posto que ofendem o interesse ‘que pertence a todos os cidadãos, considerados uti singuli’, ou seja, há um prejuízo para a coletividade”.[13]

Nada de substancial mudou na interpretação do novo tipo penal de maus – tratos a animais. Embora o rigor da lei tenha se intensificado, nota-se que essa intensificação não resulta de uma suposta tomada de consciência quanto aos Direitos dos Animais.

Certamente, a alteração mais importante operada pela nova legislação ambiental sobre o tema foi a normatização mais abrangente quanto às restrições a experiências dolorosas ou cruéis com animais (artigo 32, § 1º, da Lei 9605/98). Agora, a vedação de práticas não se reduz àquelas perpetradas em público ou em local exposto ao público, como na antiga contravenção penal (artigo 64, § 1º, LCP). Essas condutas são proibidas e apenadas sempre que praticadas, seja em público, seja reservadamente. Parece que neste aspecto o legislador não desconsiderou totalmente os sentimentos dos animais, especialmente seu sofrimento físico e psíquico, para dar atenção somente aos pudores, moralidades e suscetibilidades humanos.

Não obstante, há quem indague se a lei não teria sido um tanto exagerada ao punir cientistas, professores e estudiosos.[14]

Ademais, a preocupação com o bem – estar dos animais, ínsita ao dispositivo, não foi o bastante para alterar a tradicional interpretação dos fins e objetos das normas protetivas faunísticas. Veja-se, por exemplo, o posicionamento de Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas que, ao comentarem o dispositivo do § 1º, do artigo 32, da Lei Ambiental, continuam apontando a coletividade como sujeito passivo da conduta incriminada e os animais como seu objeto material.[15]

Nesse campo das experiências científicas faz-se muito nítido o conflito entre o interesse humano pelo desenvolvimento, especialmente de técnicas terapêuticas e medicamentos, e o bem – estar dos animais frequentemente utilizados como cobaias nessas atividades.

São inúmeros os avanços da ciência médica creditados a experimentos com animais, muitas vezes dolorosos ou letais (v.g. vacinas, insulina sintética etc.). Dessa forma, o sacrifício de seres vivos não – humanos tem proporcionado a salvação de inúmeras vidas humanas, bem como a melhoria da qualidade de vida e a cura de várias pessoas. Não se devem olvidar também os avanços na área veterinária, que beneficiam diretamente os próprios animais.

Quer se lance mão de uma perspectiva utilitarista, ou de uma abordagem ética de qualquer outra orientação, o tema é de intrincada solução.

A legislação brasileira busca certa ponderação de valores na medida em que não proíbe, de forma absoluta, essas experiências, mas as condiciona à circunstância de não existirem “recursos alternativos”. Trata-se de elemento normativo do tipo, ou seja, um daqueles que para sua “compreensão o intérprete não pode se limitar a desenvolver uma atividade meramente cognitiva, subsumindo em conceitos o dado natural, mas deve proceder a uma interpretação valorativa”.[16]

Esses elementos normativos podem ser classificados em duas espécies, a saber: jurídicos e culturais. Os primeiros “são os que trazem conceitos próprios do Direito”, enquanto os culturais “envolvem conceitos próprios de outras disciplinas do conhecimento, científicas, artísticas, literárias ou técnicas”.[17]

Resta nítido que a expressão usada na lei, “recursos alternativos”, constitui um elemento normativo cultural, cuja devida interpretação ficará na dependência de conceitos e conhecimentos técnico – científicos.

Certamente os operadores do Direito, para a correta aplicação da lei, necessitarão lançar mão de perícias e pareceres de técnicos especializados que poderão analisar com conhecimento de causa os casos concretos submetidos à apreciação da Justiça.

Luciana Caetano da Silva expressa sua preocupação com a vagueza da expressão, o que, em seu entender, pode constituir uma ofensa ao Princípio da Taxatividade que deve orientar a elaboração dos tipos penais. Em seu entendimento, mesmo a possibilidade da apreciação dos casos concretos por peritos habilitados pode gerar uma deletéria “inibição” da atividade de pesquisa científica, com evidentes prejuízos ao ser humano.[18]

A autora chega a propor uma drástica delimitação da norma proibitiva, reduzindo a conduta incriminada à prática da vivissecção sem anestesia e à experiência cruel em animal vivo em local público. Praticamente propõe um retrocesso à antiga contravenção penal do artigo 64, LCP, diferindo apenas pela proibição generalizada da prática específica da vivissecção sem anestesia, a qual não seria proibida somente em público, mas também reservadamente. Aliás, a autora deixa claro que considera exagerada a punição dessas condutas como crimes, sugerindo que permanecessem tratadas como meras contravenções penais.[19]

Em conclusão, tem-se que a penetração, no meio jurídico, de qualquer espécie de norma ou interpretação de uma norma, que fuja, um mínimo que seja, da matriz antropocêntrica, enfrenta barreiras praticamente insuperáveis. Barreiras estas que chegam a distorcer até mesmo disposições muito claras e a relegar certas normatizações a um verdadeiro ostracismo.

Seria mesmo algo que beira a insanidade pretender escolher o bem – estar de um camundongo em detrimento da saúde e da vida de seres humanos. Mesmo defensores ferrenhos dos Direitos dos Animais, como Peter Singer, admitem que, numa situação-limite de escolha, os seres humanos, em regra, são dotados de características que lhes dariam certa preferência.[20] Mas isso não significa que os demais seres vivos devam ser sumariamente alijados da consideração moral e jurídica, destituídos de direitos e desprezados em sua sensibilidade.

É possível sim, na maioria das vezes, contrabalançar os interesses humanos e a consideração dos sentimentos dos animais, inclusive concretizando essa orientação solidária e ética em normas legais plenamente aplicáveis. Um bom exemplo é o dispositivo do artigo 32, § 1º, da Lei Ambiental Brasileira, pois que, sem submeter os seres humanos a qualquer degradação, não deixa de considerar e repudiar o sofrimento desnecessário imposto aos animais.

O rigor do dispositivo, ao inverso de consistir em fator de inibição da pesquisa científica, vem a estimular a descoberta de métodos menos cruéis para o desenvolvimento científico. Sem essa vedação rigorosa jamais haveria interesse, por uma questão de comodismo e insensibilidade moral, na descoberta de novos métodos que evitem o uso indiscriminado de animais nas pesquisas. Mais que isso, mesmo nos casos em que tais “recursos alternativos” já existem, seu uso somente estaria condicionado a fatores financeiros e de conveniência dos pesquisadores, jamais se levando em conta o sofrimento infligido desnecessariamente aos animais.


Dessa análise histórico – cultural e conceitual, se conclui que a proteção jurídica aos animais, no que tange aos maus – tratos, foi objeto de ampliação e aperfeiçoamento em nosso ordenamento. Neste contexto, o advento da Lei 14.064/20 se insere como mais uma tentativa de melhoria da tutela dos animais quanto ao respeito à sua condição de seres sensíveis.

3-AS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 14.064/20

A Lei 14.064/20 incluiu um § 1º. – A, no artigo 32 da Lei 9.605/98, criando com isso uma figura qualificada de maus – tratos a animais. A pena prevista para o artigo 32, “caput” e para a conduta equiparada de seu § 1º., é de “detenção, de 3 (três) meses a 1(um) ano, e multa”. Já para os casos agora previstos no novel § 1º. – A, a reprimenda é de “reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda”.

A conduta a ser perpetrada pelo infrator contra os animais não se altera, já que o §1º. – A faz referência àquelas descritas no “caput” do dispositivo em destaque. O que muda é a espécie de animal objeto das referidas condutas já anteriormente incriminadas e a pena maior agora prevista.

A Lei 14.064/20 cria uma proteção diferenciada para “cães e gatos”, em detrimento de todos os demais animais. Tanto a pena mais gravosa como a proibição de guarda são aplicáveis somente quando forem maltratados “cães ou gatos”. Para outros animais nada mudou.

Essa escolha arbitrária de duas espécies parece ser uma continuação de certa “mania” (que já tem foros patológicos) do legislador brasileiro em atomizar, distinguir e inaugurar tratamentos diversos para situações para as quais caberia uma abordagem universalizante. O tribalismo e o identitarismo divisores, depois de contaminarem o pensamento com relação aos humanos, agora chegam aos animais. [21] Esse tipo de “lógica ilógica” tem o condão de fazer com que mais e mais leis tenham de ser editadas ao sabor dos grupos que se pretenda defender ou satisfazer em dado momento, devido a fatores circunstanciais políticos, econômicos, sociais, midiáticos etc. No caso específico, daqui a algum tempo, poderá ser criado, então, um novo parágrafo para tratar de cavalos, outro para girafas e rinocerontes, mais um para lacraias, outro para onças e por aí vai “ad infinitum”.

Entretanto, o equívoco mais grave sob o prisma jurídico dessa eleição de certos animais para um tratamento diferenciado não é o tribalismo ou identitarismo animal, mas algo que, juridicamente, deriva dessas posturas “intelectuais”. O pior erro se dá por infração ao Princípio Constitucional da Igualdade ou da Isonomia. Não há motivo plausível para um tratamento diferenciado para os atos de maus – tratos, envolvendo cães e gatos, deixando os restantes animais numa vala comum de indiferença.

A suposta alegação que, segundo consta, justificaria esse tratamento diversificado, seria a de que os cães e os gatos são mais comumente vítimas desses atos de barbárie. Ora, essa tese não se sustenta de forma alguma, pois conforme aduz Argachoff, “basta uma rápida busca através da internet e serão encontrados diversos casos de maus – tratos e mutilações contra cavalos, aves ou diversos outros animais silvestres, domésticos ou domesticados”. [22]

Para que um tratamento diferenciado seja dado a uma categoria qualquer, tendo em vista até mesmo a concretização do Princípio da Igualdade por meio do que se convencionou chamar de “discriminação positiva”, são necessários fundamentos sustentáveis a justificarem tal diversificação.

Conforme escorreito escólio de Mello:

As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição (grifos no original). [23]

Por mais que se procure algum fundamento para tratar diversamente cães e gatos, os únicos motivos são de índole discriminatória injustificável, marcados por subjetivismos e sentimentalismos. A proteção conferida a um ou outro animal não se pode basear no fato de que consideramos alguns mais bonitos, “fofos”, amigáveis. Essa proteção contra maus – tratos está ligada, não a qualquer subjetivismo ou sentimentalismo, mas ao fato concreto e indiscutível de que os animais, universalmente falando, são passíveis de sofrimento e dor, razão pela qual merecem a consideração de não serem tratados como coisas inanimadas ou mecanismos meramente reativos, conforme já os considerou Descartes e, ainda mais radicalmente, La Mettrie, que expandiu tal conceito mirabolante para abranger também os homens. [24]

O exemplo exposto por Argachoff é extremamente oportuno e esclarecedor:

A título de exemplo tratemos de uma situação hipotética de dosimetria de pena, onde um cachorro e um cavalo sofram mutilação. O autor do crime contra o cão estará sujeito, devido à alteração legislativa, a pena variando entre dois a cinco anos de reclusão, multa e perda da guarda do animal, se a tiver. Já com relação ao agressor do cavalo a legislação é bem mais benevolente, sujeitando-o a uma pena de detenção de três meses a um ano e multa. [25]

E o autor em destaque, com absoluta agudez, ainda arrola outras consequências de natureza processual penal mais gravosas para o agressor de cães e gatos, tais como o afastamento das benesses da Lei 9.099/95, a possibilidade de Prisão em Flagrante e a impossibilidade de arbitramento de fiança criminal pelo Delegado de Polícia, sendo fato que nenhuma dessas consequências mais gravosas se aplica ao violentador de outros animais que não cães e gatos (a infração do artigo 32, “caput”, da Lei 9.605/98 é de menor potencial ofensivo; afiançável pelo Delegado de Polícia e sequer, em regra, se lavrará auto de prisão em flagrante e sim mero Termo Circunstanciado, com liberação do infrator, independentemente de fiança). [26] Também com idêntica perspicácia Leitão Júnior faz menção a essas limitações impostas ao infrator do novo § 1º. –A, acrescentando oportunamente a vedação do Acordo de Não Persecução Penal, atualmente regulado no artigo 28 – A, CPP com redação dada pela Lei 13.964/19 (Lei Anticrime), isso tendo em vista que a pena máxima de 5 anos ora prevista desborda a pena de 4 anos exigida como máxima para que se faça jus ao acordo. [27]

Nem se cogite o emprego de analogia para equiparar as penalidades, ainda que em casos mais gravosos que envolvam animais diversos de cães e gatos. A redação do § 1º. – A, em estudo é taxativa (“numerus clausus”), aliás, como é de boa técnica na redação de normas de caráter penal. Qualquer intento de analogia seria “in mallam partem” e, portanto, absolutamente vedada para a seara criminal.

Note-se que a pena mais gravosa para os maus – tratos de cães e gatos somente é aplicável para as condutas previstas no “caput” do artigo 32 da Lei Ambiental. Isso é expressa e induvidosamente estabelecido na redação do § 1º. – A. Portanto, não são alcançadas as situações de imposição de experiência dolorosas, ainda que a cães ou gatos, quando existirem recursos alternativos, conforme consta da conduta equiparada prevista no § 1º., do artigo 32 da Lei 9.605/98. Nesse caso, a pena aplicada é a do “caput”, e não a nova pena do § 1º.-A. Aqui também não se vê razão plausível para discriminação.

Mesmo o fato de que tal conduta, eventualmente, se dê para fins didáticos ou científicos, não justifica, bioeticamente e, consequentemente, no campo do Biodireito, tratamento diversificado. É irrelevante se a crueldade perpetrada contra um cão ou um gato se dá em uma experiência ou em outras circunstâncias; tanto é fato que a conduta sempre foi equiparada ao “caput”. Dessa forma, se o § 1º. – A, prevê nova pena para os casos envolvendo cães ou gatos para o “caput”, isso deveria valer normalmente para o § 1º., até por uma questão de coerência com o histórico legislativo. Infelizmente, não foi assim, pois a redação do § 1º. – A é restritiva e indica sua aplicação somente ao “caput”, de modo que o Princípio da Legalidade exclui a possibilidade de aplicação da pena mais gravosa aos casos abrangidos pelo § 1º. Portanto, além da impropriedade de restrição da reprimenda mais grave apenas para os “eleitos” cães e gatos, exsurge mais uma incoerência, que é a subproteção, mesmo de cães e gatos, no que se refere a experiências dolorosas desnecessárias.

Doutra banda, não se pretende também apregoar aqui o reconhecimento da inconstitucionalidade para invalidar a pena mais gravosa erigida pela Lei 14.064/20. Na verdade, havia uma inconstitucionalidade por insuficiência protetiva quanto à pena prevista no “caput” do dispositivo em comento, a qual foi parcialmente consertada com a previsão de pena mais adequada no § 1º. – A pela Lei 14.064/20. A proposta é de “lege ferenda” para que se possa pensar em ampliar a pena mais gravosa e a proibição de guarda para todos os casos, realmente reparando de vez de forma completa a insuficiência protetiva. Declarar a inconstitucionalidade do § 1º.-A para retornar ao “status quo ante”, seria equivalente a repristinar uma inconstitucionalidade por insuficiência protetiva que agora está, ao menos em parte, solvida. Tal opção seria um desatino. Por isso, a única proposta coerente é a de ampliação do tratamento dado pela Lei 14.064/20 para cães e gatos a todos os demais animais, pela via legislativa, já que a analogia “in mallam partem” é inviável, resolvendo de uma vez por todas a questão da insuficiência protetiva e ajustando a legislação de acordo com o Princípio da Igualdade ou Isonomia.

Segundo consta, a Presidência da República teria ficado reticente em sancionar a legislação, considerando que a nova pena prevista seria muito alta. [28] Ao final, a nosso ver acertadamente, a legislação foi sancionada. Ocorre, porém, que certa razão assistia à Presidência da República em suas reservas. Comparando a reprimenda de reclusão, de dois a cinco anos prevista para a violência contra animais com, por exemplo, a pena para a lesão corporal de natureza grave praticada contra humanos, se verifica que uma lesão leve, ainda que cruel, perpetrada contra um animal, terá penalidade maior que a lesão grave em um humano, cujo preceito secundário prevê pena de reclusão, de um a cinco anos somente. Isso sem falar nas penas para lesões leves em humanos que não passam do máximo de um ano de detenção e, mesmo no caso de violência doméstica, não ultrapassam o máximo abstrato de três anos (vide artigo 129, “caput”, § 1º., I a IV e § 9º., CP). E a coisa pode ainda piorar.

Há crimes contra a vida de seres humanos que são apenados de forma muito mais branda do que a violência contra cães e gatos. Os casos de autoaborto e aborto consentido, previstos no artigo 124, CP têm a ridícula pena de detenção, de um a três anos. Mesmo o aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante (artigo 126, CP), apresenta pena menor que a do artigo 32, § 1º. – A da Lei Ambiental (reclusão, de um a quatro anos). O Infanticídio (artigo 123, CP) tem pena mínima igual à crueldade contra animais (2 anos) e pena máxima apenas um ano maior (seis anos). Tudo isso sem levar em conta toda a movimentação existente em nossa sociedade para a descriminalização do aborto a nos lembrar do “amor” dos nazistas, inclusive do próprio Hitler, aos animais, enquanto liberava abortos e toda espécie de genocídio e crueldades contra humanos.

Essas lembranças deveriam chocar todos aqueles que se sentem gravemente ofendidos e estarrecidos com a destruição de um feto de tartaruga marinha, mas não alimentam qualquer empatia por um embrião, feto ou até mesmo um bebê humano, já em vias de nascimento ou mesmo nascido, defendendo a legitimidade absurda, até mesmo do eufemisticamente chamado “aborto tardio”, que, na verdade, não passa de homicídio cruento. [29] E ainda têm a capacidade incrível de atribuir o epíteto de “nazista” e “genocida” a outros, o que somente se pode explicar por uma esquizofrênica briga em frente ao espelho, naquilo que a psicologia chamaria de “projeção”. [30]

Isso é um resultado da falta da mais mínima noção ou mesmo pretensão de um exame das origens das ideias defendidas, conformando-se o indivíduo, normalmente, com sua mera simpatia por determinada convicção, substituindo totalmente a racionalidade pelo sentimentalismo raso, sem jamais perscrutar para saber de onde aquilo surgiu, quais suas conexões com ideologias, filosofias, sistemas éticos, políticos etc. É a ignorância gerando seus frutos malsãos.

Mas, a cereja do bolo da desproporção ainda está por vir. O artigo 32, § 1º. – A da Lei 9.605/98, com nova redação dada pela Lei 14.064/20 coíbe, mediante pena de reclusão, de dois a cinco anos, multa e proibição de guarda, os “maus – tratos contra animais”, mais especificamente ainda, contra cães e gatos. Por seu turno, o artigo 136, “caput”, CP prevê a punição dos “maus – tratos contra seres humanos”, sendo a pena do delito simples somente de “detenção, de dois meses a um ano, ou multa” (note-se que há multa alternativa, ou seja, a pena pode ser somente pecuniária de acordo com a individualização judicial). Ainda que resulte dos maus – tratos a humanos lesões graves ou mesmo gravíssimas, a pena prevista no artigo 136, § 1º., é só de “reclusão, de um a quatro anos”, sem nem mesmo previsão de multa!

Assim sendo, a Presidência da República deu mostras de sensibilidade para essa realidade incoerente da nossa legislação, a qual retrata uma cultura decadente na qual se opera uma desumanização silenciosa sob o manto forjado de supostas sensibilizações humanitárias, ecológicas etc. Mas, então por que se afirma neste texto que a opção pela sanção foi correta no final das contas? É simples. Porque, na verdade, não é a pena prevista para os maus – tratos contra animais que é, em si e por si, alta demais. Não, ela é adequada. O problema se apresenta na sua relação com outros tipos penais, tais como os elencados em exemplos acima. Então, não é a crueldade contra animais que tem pena muito alta com a Lei 14.064/20 e sim muitos crimes contra a pessoa humana que apresentam penas por demais irrisórias comparativamente falando. Se há uma revisão a ser feita, é neste sentido. Os animais merecem consideração como seres sencientes que induvidosamente são. Mas, os humanos merecem ainda maior consideração não somente como seres sencientes que também são, mas como seres “espirituais”, quer se interprete a espiritualidade em termos religiosos, metafísicos ou mesmo estritamente científicos.

Considerando que a Lei 14.064/20 cria uma qualificadora para os casos de maus – tratos de cães e gatos, propiciando um aumento considerável da pena “in abstracto”, somente poderá ter aplicação a partir de seu vigor, sem possibilidade de retroatividade.

O legislador, dentre as reprimendas previstas para a crueldade contra animais, manteve, para os casos do § 1º. – A, envolvendo cães ou gatos, a pena de multa. Certamente perdeu uma grande oportunidade de dar um destino mais adequado aos valores recolhidos com pagamentos dessas multas, destinando-os a um fundo especial para auxiliar programas e entidades protetoras. Tendo em vista a falta de uma previsão expressa, a pena de multa se destinará à vala comum do FUNPEN (Fundo Penitenciário Nacional), nos termos do artigo 49, CP.

Inovação prevista no novo §1º. – A é a “proibição da guarda” de cães e gatos. Novamente, infelizmente, tal penalidade se reduz aos cães e gatos, não havendo previsão similar no que tange aos demais animais. Por força do Princípio da Legalidade, enquanto limitador do poder punitivo estatal, não é viável a aplicação dessa sanção em casos de maus – tratos infligidos a animais que não sejam cães ou gatos. Cabem aqui as mesmas críticas erigidas quanto à limitação da pena privativa de liberdade somente a duas espécies “privilegiadas” de animais.

Quanto à penalidade de “proibição da guarda” de cães e gatos, uma dúvida pode surgir. Seria tal proibição referente somente àquele cão ou gato maltratado pelo infrator especificamente ou essa proibição seria abrangente da guarda de qualquer outro cão ou gato. Poderão surgir na doutrina e jurisprudência incipientes sobre o tema ambas as interpretações expostas. Contudo, entende-se que não tem sentido que tal proibição venha a ser específica para um determinado animal. O indivíduo capaz de infligir maus – tratos ou agir cruelmente contra certo animal, quase que invariavelmente atuará da mesma forma com outro espécime, de forma que autorizar tal pessoa a ter a guarda de outro cão ou gato é o mesmo que tão somente alterar a vítima, mantendo o algoz.

E não se confunda essa situação com medidas protetivas conferidas para a preservação de seres humanos (v.g. Lei 11.340/06 e artigo 319, CPP). Acontece que os seres humanos são extremamente individualizáveis, enquanto que os animais se manifestam de forma determinada pela espécie e pela sua condição natural. Um indivíduo que age de forma agressiva com uma pessoa determinada, não necessariamente atuará da mesma maneira com outra, embora isso não seja descartável. Já um violentador de animais certamente não muda sua conduta de um espécime para outro.

Além disso, as pessoas potencialmente vitimizáveis por um agressor são dotadas de poder de escolha em dele se aproximar e conviver, enquanto que os animais não têm essa opção existencial. Afora essa fundamentação com fulcro na razoabilidade, também a própria interpretação gramatical da lei está a indicar uma proibição genérica e não particular. A lei usa a expressão “proibição da guarda” e não “perda da guarda” ou “retirada da guarda”. A expressão usada na lei é claramente abrangente e genérica. As outras duas, que poderiam ter sido usadas pelo legislador e não o foram, teriam um sentido mais restritivo, implicando, inclusive na existência de guarda anterior a ser “perdida” ou “retirada”. Mas a lei se refere a “proibição”.


Essa proibição da guarda por ordem judicial deverá ser cumprida pelo infrator condenado e se descumprida configurará crime contra a administração da justiça de “Desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito”, nos termos do artigo 359, CP.

É de ressaltar que a proibição de guarda deveria ser também prevista como uma cautelar urgente e preventiva, para além de sua aplicação definitiva quando da condenação transitada em julgado, conforme consta do § 1º. – A. Fato é que tal cautelar não é prevista expressamente no Código de Processo Penal (artigo 319), nem na própria Lei Ambiental (Lei 9.605/98). Quanto ao animal (e neste caso não somente cães e gatos) especificamente vitimizado, é certamente suficiente a medida cautelar geral de apreensão e encaminhamento a locais adequados, conforme artigo 25, §§ 1º. e 2º., da Lei 9.605/98. Além disso, há a possibilidade de aplicação da medida administrativa de apreensão de animais, conforme estabelecido no artigo 72, IV do mesmo diploma ambiental.

A lacuna que fica – e que sempre esteve presente – é aquela com relação à guarda de outros animais, o que leva ao reforço do entendimento de que a ordem de proibição de guarda agora prevista é geral e não particular, conforme anteriormente exposto. Acontece que tal ordem restritiva de direitos somente se dará ao fim do processo e será cumprida com o trânsito em julgado. Seria salutar que tal interdição já pudesse ser aplicada em certos casos concretos que a justificassem, de imediato, como providência cautelar, o que, infelizmente, não é legalmente previsto. A única saída neste caso seria que o magistrado apelasse para o chamado “poder geral de cautela”, o qual, porém, é bastante discutível quanto à sua aplicação na seara processual penal, de modo que a previsão expressa dessa cautelar teria sido muito bem vinda.

Outra questão importante sobre a “proibição da guarda” é que a lei não prevê um tempo mínimo e máximo para tal proibição. Não é possível entender que essa restrição de direito seja aplicável de forma indefinida no tempo, pois isso equivaleria à previsão de pena de caráter perpétuo, o que é vedado pela Constituição Federal (inteligência do artigo 5º., XLVII, “b”, CF).

No silêncio da lei, algumas soluções podem ser propostas:

a) A interdição teria a mesma duração do tempo de pena privativa de liberdade aplicada no caso concreto, por analogia às penas restritivas de direito quando substitutivas das privativas de liberdade (artigo 44, CP);

b) A interdição teria a duração do tempo da pena privativa de liberdade aplicada “in concreto”, acrescido, após sua extinção, de mais 2 (dois) anos, tendo em vista a necessidade de o condenado requerer sua “reabilitação” , nos termos dos artigos 93 a 95, CP.

c) O prazo seria variável, aplicando-se por analogia o sistema de “Medidas de Segurança”, de modo que ao juiz sentenciante caberia estabelecer um prazo mínimo de interdição entre 1 (um) e 3 (três) anos, submetendo o interessado a um exame multidisciplinar (psiquiátrico, psicológico e social) para verificar se tem condições de ter novamente a guarda de animais. Em caso positivo, seria liberado. Em caso negativo, a interdição seria renovada por mais 1 (um) a 3 (três) anos e assim sucessivamente, nos termos do artigo 97, § 1º., CP.

De todas essas hipóteses, a mais plausível, segundo se entende seria a do item “b”, ou seja, usando o critério da reabilitação.

A hipótese menos aceitável seria a do item “c”, pois que, desde a reforma da Parte Geral do Código Penal, em 1984 (Lei 7.209/84), foi extinto o sistema “duplo binário”, adotando-se o sistema chamado “vicariante”, não sendo possível a concomitância, sucessão ou a confusão entre pena e medida de segurança (inteligência do artigo 96, Parágrafo Único, CP). [31]

Contudo, tendo em vista as características dos maus – tratos a animais, parece que o ideal seria ter a legislação inovado para estabelecer um prazo mínimo para a “proibição da guarda”, devendo o implicado, se tivesse interesse, requerer ao juízo uma avaliação, após tal prazo, a qual seria multidisciplinar (psiquiátrica, psicológica e social). Não havendo deferimento, a interdição seria renovada por igual período, dependendo sempre de pedido de reavaliação para sua extinção. Esse procedimento, se estabelecido na lei ambiental, seria muito semelhante ao mecanismo da medida de segurança, mas com ela não se confundiria. Não obstante, essa previsão inexiste, sendo, portanto, inaplicável, porquanto no cenário jurídico disponível se confundiria com uma medida de segurança aplicada em duplo – binário, o que é hoje inviável.

Por fim, cabe observar que o aumento de pena da ordem de um sexto a um terço, conforme previsto no artigo 32, § 2º., da Lei Ambiental, quando ocorre a morte do animal, é aplicável não somente aos casos do artigo 32, “caput” da Lei 9.605/98, mas também aos casos abrangidos pelo novo § 1º. – A do artigo 32 do mesmo diploma. Não há razão alguma para limitação desse aumento apenas à figura simples, mesmo porque o § 2º., por obviedade, se acha abaixo do § 1º. – A e, conforme regra de técnica legislativa, os parágrafos se aplicam naturalmente a tudo que está acima deles na disposição topográfica da lei.

Assim também pensa Leitão Júnior, ao asseverar que o aumento e a qualificadora “convivem perfeitamente entre si”. [32] Mesmo antes da Lei 14.064/20 já ensinavam Gomes e Maciel que o aumento de pena do § 2º., era aplicável tanto ao “caput” como ao § 1º., de forma que a inclusão de um § 1º. – A em nada altera o quadro. Ademais, importa lembrar que os mesmos autores esclarecem que o aumento pela morte do animal será aplicável se o animal for “doméstico, domesticado ou exótico”, seja decorrente de dolo ou preterdolo.

Já se o animal for silvestre, somente se aplicará o aumento se a morte for preterdolosa, pois em caso de dolo, se caracteriza “o delito do art. 29, “caput” com a agravante do art. 15, II, “m” (emprego de método cruel)”. [33] Para o artigo 32, § 1º. – A, da Lei Ambiental, invariavelmente, seja a morte decorrente de dolo ou preterdolo, será possível aplicar o aumento do § 2º., pois que o dispositivo se refere específica e exclusivamente a “cães e gatos”, que são animais domésticos.

4-CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho foram analisadas, sob um prisma crítico, as alterações promovidas pela Lei 14.064/20 na Lei Ambiental (Lei 9.605/98), mediante a criação de uma nova qualificadora para os casos de maus – tratos contra cães e gatos.

Iniciou-se o estudo por uma descrição da evolução histórica do tratamento penal da conduta de crueldade contra animais, a qual passou de simples contravenção para transmudar-se em crime, com o advento da Lei 9.605/98, e agora ganhar uma nova qualificadora. Observou-se que, inobstante os avanços na punição de atos cruéis perpetrados contra animais, jamais foi superado o paradigma antropocêntrico, inclusive para designação do sujeito passivo do crime e do bem jurídico tutelado. Por outro lado, há uma evolução no pensamento, reconhecendo que os animais não podem ser tratados de acordo com um modelo que os considere como meros mecanismos ou natureza inanimada, tendo em vista sua característica de seres sencientes. O reconhecimento dessa condição dos animais, mais que um juízo de valor, é um juízo de fato e não precisa, nem deve implicar em uma zoologização do homem, ou numa indevida equiparação da humanidade à animalidade, nem mesmo no reconhecimento de uma simples diferença quantitativa e não qualitativa entre essas realidades.


A criação de um grupo privilegiado de animais, no caso cães e gatos, a contarem com uma proteção diferenciada da lei penal, foi apontada como infratora da igualdade ou isonomia, sendo a solução não a eliminação da proteção penal mais rigorosa ora adotada, mas sua ampliação para todos os demais animais.

Reconheceu-se a existência de uma insuficiência protetiva com relação às condutas de maus – tratos contra animais devido às penas muito brandas do artigo 32 da Lei Ambiental. Entretanto, isso não inibe a conclusão de que a atual penalidade confronta desproporcionalmente com muitos preceitos secundários de crimes similares, ou muito mais gravosos praticados contra humanos. Novamente, a solução preconizada não é desprover os animais da proteção adequada e proporcional, mas ajustar o sistema como um todo, promovendo a uma revisão de penas que são muitas vezes até mesmo ridículas em relação à gravidade das infrações a que estão atreladas.


Sugeriu-se, de “lege ferenda”, a criação de um mecanismo de direcionamento das multas aplicadas em casos de maus – tratos a animais a instituições e programas protetivos, evitando sua destinação natural ao Funpen, conforme dispõe o Código Penal em seu artigo 49.

A penalidade de “proibição da guarda” foi analisada, concluindo-se que se refere não somente à guarda do animal especificamente maltratado, mas à de qualquer outro animal.


Tendo em vista a lacuna legal em estabelecer um tempo específico para a proibição da guarda, vislumbrou-se possível infração à vedação de penas perpétuas, sugerindo-se como solução mais adequada, também de “lege ferenda”, o estabelecimento de um prazo mínimo de interdição com reavaliações periódicas, acaso requeridas pelo interditado. Enquanto isso não ocorre, a melhor solução encontrada foi a aplicação analógica do prazo para reabilitação penal.


Foi observado que a previsão somente como pena da proibição da guarda é insatisfatória, devendo se pensar, de “lege ferenda”, na criação de uma cautelar respectiva, pois o “periculum in mora” é evidente. No atual quadro, a única opção do magistrado é apelar para o chamado “Poder Geral de Cautela”, que é muito discutível quanto à sua aplicabilidade na seara Processual Penal.


O descumprimento da ordem judicial de proibição da guarda configurará novo ilícito a que responderá, necessariamente, o infrator, qual seja, aquele previsto no artigo 359, CP, obviamente sem prejuízo de eventual nova responsabilização por crime de maus – tratos se isso se operar em reiteração.


A pena mais gravosa ora prevista no § 1º.-A somente se aplica aos casos descritos no “caput” do artigo 32 da Lei 9.605/98, por expressa disposição legal. Não alcança, portanto, a conduta equiparada prevista no artigo 32, § 1º., da Lei Ambiental, por força do Princípio da Legalidade.


A causa de aumento de pena do § 2º., é aplicável ao “caput”, § 1º. e § 1º. – A do artigo 32 do diploma respectivo.


Não é viável a retroação da figura qualificada ora prevista no § 1º. – A para casos pretéritos, eis que se constitui em “lex gravior”.


Pode-se afirmar, por derradeiro, que a Lei 14.064/20 soluciona parcialmente uma insuficiência protetiva que existia com relação aos maus – tratos a animais, devido à previsão de penas extremamente leves. Não obstante, o avanço é limitado porque reduz o alcance da norma apenas ao que se poderia chamar de uma “casta privilegiada” de animais, quais sejam, os cães e os gatos. A revisão dessa limitação se apresenta como necessária a bem da igualdade e da satisfação, em sua inteireza, da eliminação da insuficiência protetiva que anteriormente imperava de forma absoluta, mas que agora ainda subsiste em parte. Essa subsistência viola a Constituição em seus aspectos de Justiça, Proporcionalidade, Razoabilidade e Igualdade ou Isonomia.


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Sobre os autores

Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia em Guaratinguetá (SP). Mestre em Direito Social. Pós-graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós-graduação da Unisal. Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.


Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette
Advogada, Pós-graduada em Direito Público e Pós – graduanda em Direito Civil e Processo Civil.

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